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Sr Director (PÚBLICO):
Esta manhã fui surpreendido pela notícia do assassinato a tiro seguido de decapitação, ocultação do corpo e encobrimento, perpetrado pelo comandante do Posto da GNR de Sacavém, na pessoa de um jovem de vinte e poucos anos.
Horas mais tarde, na televisão, ouvi declarações sucessivas do Comandante Geral da GNR, do Ministro que tutela as Polícias e, finalmente, do nosso Primeiro Ministro. Todos foram unânimes em garantir que os responsáveis serão presentes a tribunal que, certamente, lhes aplicará as penas devidas.
Mais declararam que se trata de um caso isolado, que em nada afecta o bom nome da corporação, e por aí adiante.
Lamento discordar do nosso ingénuo PM: não se trata de um caso isolado, e afecta ainda mais o prestígio das forças policiais como um todo (GNR e PSP). Digo que o caso não é isolado, porque ao longo dos últimos anos, houve vários casos de violência sobre cidadãos indefesos no interior de esquadras e postos da GNR, de que apresento alguns:
1. Na Esquadra de Matosinhos, um cidadão algemado foi assassinado a tiro por um agente. O crime foi encoberto por meio de uma participação em que se alegava ter o detido conseguido tirar a arma a um agente, suicidando-se com ela.
2. Um talhante da Costa da Caparica, na sequência de uma multa de estacionamento, foi levado para o posto da GNR onde passou a noite, e donde saíu com graves traumatismos e equimoses um pouco por todo o corpo.
3. Um estudante universitário foi detido em Setúbal e levado para a 1ª esquadra da PSP, onde foi insultado (preto, porco angolano) e espancado.
4. O Pelotão de Segurança da PSP do Porto viu-se envolvido num complicado processo (corrupção, extorsão, etc), incluindo agressão a uma testemunha do processo, no interior da 11ª esquadra.
5. Um cidadão detido na esquadra das Taipas, algemado ao corrimão das escadas, suicidou-se com o próprio cinto.
6. Uma empresária deu entrada na esquadra de Odivelas, foi conduzida horas depois ao Hospital de Santa Maria, saindo daí para os calabouços do Governo Civil onde passou a noite. Foi solta na manhã seguinte sem chegar a ser presente a tribunal. A polícia desconhece a causa das nódoas negras que a empresária apresentava um pouco por todo o corpo, bem como desconhece como terá fracturado um braço.
7. Um informador passou algumas horas na PJ de Setúbal, donde saíu com diversas marcas indiciando maus tratos, verificadas no Hospital e registadas em relatório médico.
8. Um jovem de 16 anos foi interceptado por um carro da polícia à porta de casa em Matosinhos, levado para a esquadra onde passa a noite, sendo-lhe negada autorização para telefonar aos pais. Aquando da detenção foi-lhe negada autorização para avisar os pais (era só tocar a campainha...).
Esta pequena lista veio ao correr da pena, e sugere que as esquadras de polícia e postos da GNR são locais perigosos, onde as pessoas estão à mercê dos agentes, sem testemunhas exteriores à corporação, muitas vezes sem autorização para contactar o mundo exterior. O que se passou no posto da GNR de Sacavém só transpirou para o domínio público porque o detido morreu.
Não tenho quaisquer dúvidas de que foi um acidente, nem será isso que está em causa. O comandante do posto estava a interrogar o detido (pode?), intimidou-o com a arma para o levar a confessar (pode?) e, por azar, a arma estava carregada.
Se não estivesse, o mais que poderia ter acontecido, seria o detido passar pelo Hospital para receber tratamento por ter escorregado nas escadas e batido com a cabeça no corrimão (com todo o posto a testemunhar).
É preciso que o nosso Primeiro Ministro (tão bonzinho e ingénuo, benza-o Deus!) e o Ministro-que-tutela-as-Polícias se convençam de que os polícias são pessoas como as outras, com tendência para pisar o risco quando sentem que beneficiam de impunidade. E é precisamente isso que se passa quando se permite que um cidadão fique à mercê dos agentes, sem quaisquer testemunhas isentas, e sem que possa informar imediatamente alguém do seu paradeiro.
Será muito complicado criar nas esquadras um circuito de vídeo (com gravação) cobrindo zonas bem demarcadas para fora das quais os detidos não possam ser levados? Será complicado garantir que o detido possa fazer uma chamada telefónica ainda no hall de entrada, só podendo ser levado daí após a chegada de uma pessoa da sua confiança?
Será inevitável que as esquadras continuem a ser locais perigosos?
Afinal, quem guarda a guarda?