domingo, 21 de dezembro de 2008

ANGOLA Recordações da Tropa - Cap 2 Sá da Bandeira













Sá da Bandeira não seria, no essencial, uma cidade muito diferente de Lagos, à parte o facto de não ter mar, de ter montanhas a rodeá-la e de ter prédios mais altos e mais novos (a cidade tinha nesse tempo cerca de 70 anos de idade). (Veja mais sobre a cidade aqui, ali , acoli e também neste)

Espraiava-se por uma grande área, deixando espaços consideráveis entre as casas (excepto na zona comercial, mais antiga), não havia selva visível (muito menos feras!), as ruas eram pavimentadas, a água era canalizada, a electricidade alimentava as casas o dia inteiro e a iluminação pública era tão boa como a de Lagos. Por outro lado, havia brancos com fartura por toda a cidade. Não tivemos, pois, o choque que teríamos tido se fôssemos parar à África que eu imaginara.

Sá da Bandeira era uma cidade muito agradável. Situada num planalto, tem um clima temperado, parecido com o mediterrânico, com temperaturas relativamente baixas no cacimbo e moderadas na estação das chuvas. A cidade alongava-se na direcção leste - oeste, e a parte mais antiga estendia-se desde o Palácio do Governador até ao quartel velho, passando pela câmara municipal, igreja da Sé, parque infantil (com um pequeno jardim zoológico) e picadeiro.

O picadeiro era um jardim, com lagos e zonas calcetadas, onde ao anoitecer e ao fim de semana as pessoas passeavam para lá e para cá, dando voltas e mais voltas ao local (daí o nome de picadeiro...) conversando, cumprimentando os conhecidos, comentando os acontecimentos do dia ou da semana, vendo e sendo vistos.

Um dos lagos servia para uma brincadeira muito popular entre os citadinos, que assim animavam as tardes de um determinado dia do ano (não me recordo ao certo qual era a efeméride que se comemorava, se é que alguma seria). Tratava-se de agarrar os chupeteiros[1], que passavam desprevenidos e atirá-los para dentro do lago. O lago não tinha sequer um metro de água, de modo que o mergulho, ainda que forçado, não era perigoso, e a malta divertia-se vendo os pretitos (os chupeteiros eram pretos, evidentemente) saírem da água ensopados que nem pintos, aflitos com a perda da mercadoria. Era, pois, uma brincadeira inocente e sem consequências pois as vítimas não levavam a mal (e se levassem, lá estariam os sipaios para o que desse e viesse).

Recém chegados à terra, ignorávamos que estas tradições mais não eram que a expressão sã da multi racial vivência que só o colono português conseguiu desenvolver na sua pluri secular presença em África. Assim, uma tarde em que passeávamos no picadeiro, vimos uns latagões, já em idade de ter juízo, à caça de um pretito, que fugia espavorido, enquanto um outro estava já no banho, para gáudio geral. O meu pai agarrou o miúdo e fez frente aos brincalhões que o perseguiam, reprovando a sua atitude e aconselhando-os a deixarem o miúdo em paz.

É claro que esta atitude não foi bem aceite pelos presentes, que ficaram espantados[2], mas a coisa ficou por ali. O meu pai viria a ter alguns problemas, pois nunca se adaptou ao modo criativo como em Angola se seguia a máxima de Salazar, segundo a qual uns safanões bem dados a tempo e horas evitam males maiores. Os indígenas desta terra eram tidos pelo colono como uma espécie de crianças grandes, de modo que levavam bastantes safanões a tempo e fora dele...
Para lá da praça Artur de Paiva, onde se situava o palácio do Governador e o Banco de Angola, uma das avenidas principais da cidade alongava-se passando pelo Liceu Nacional de Diogo Cão, pelo Grande Hotel da Huíla (bem ao estilo colonial, com todo o conforto possível na época) e pelo Hospital. Mais adiante, uma transversal para a esquerda levava a um bairro novo com muitas vivendas em construção, onde fora inaugurada pouco tempo antes a Escola Industrial e Comercial.

Continuando no mesmo sentido chegaríamos, já na periferia da cidade, ao parque da Senhora do Monte (reminiscência dos madeirenses que se encontravam entre os primeiros colonos que se instalaram no planalto). Para além de jardins e viveiros de plantas, nele se situava um lago-piscina de grandes dimensões (foto seguinte, de 1972, do blog de Jorge Duarte) que fazia as vezes de praia, um casino, a estação de tratamento de água e, já na encosta vizinha, a capelinha da Senhora do Monte.

Para o lado contrário, para lá do quartel velho, o asfalto e a cidade terminavam na vizinhança do campo de futebol (pelado, como era regra naqueles tempos). Seguia-se um vale descampado por onde corria um riacho que separava a cidade da encosta do Alto da Conceição. Passado o riozito, por uma pequena ponte, a estrada serpenteava pela encosta, por onde a cidade começava a expandir-se, salpicando-a de casas rústicas rodeadas por chitacas[3]. A estrada descrevia uma grande curva para a direita, ao fim da qual se encontrava o quartel (o novo) onde estava instalado o Regimento de Infantaria, uma das poucas unidades que guarneciam o território angolano, antes do início da guerra.

Um pouco abaixo do quartel, na encosta virada para a cidade, estava em construção o bairro militar, destinado aos oficiais e sargentos em serviço no Regimento, com família. Tratava-se de um pequeno grupo de quatro prédios de dois pisos, com dezasseis apartamentos para sargentos, quatro para oficiais e duas vivendas geminadas para o comandante e 2º comandante. Entre os edifícios maiores, ficavam os anexos destinados aos faxinas e impedidos, soldados pretos destacados para servirem de criados, respectivamente, aos sargentos e aos oficiais.

Para sul, erguia-se uma encosta encimada por um paredão quase vertical, desenvolvendo-se paralelamente à cidade, que terminava por uma promontório (a Ponta do Lubango) onde se viria a erguer a estátua do Cristo Rei.
Resumindo, Sá da Bandeira era, em 1958, uma cidadezinha bem portuguesa, a que não faltava uma capelinha erigida em honra de uma Nossa Senhora madeirense, um Cristo Rei vigiando lá do alto e montes de portugueses em praticamente todas as actividades. Havia, como complemento, uma população local, composta por negros atrasados e pacíficos, mão de obra barata e serviçal, que fornecia os criados, serventes, pastores, sipaios e soldados, essenciais ao funcionamento do distrito.

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NOTAS:

A foto colorida do Cristo Rei, empoleirado na ponta do Lubango não conta do livro e foi tirada do Blog Fotos de Angola, onde pode encontrar muitas mais fotos.

[1] Os chupeteiros eram, como atrás referi, vendedores ambulantes, miúdos que circulavam pela cidade com caixas de doces vários (em particular “chupetas”, ou chupa-chupas), normalmente por conta de uma industrial doméstica, que assim acrescentava uns cobres aos ganhos do “cabeça de casal”

[2] Terão certamente pensado, como na anedota, qualquer coisa como “branco não é di cá...”

[3] Pequenas hortas.

3 comentários:

  1. Estou a gostar da sua prosa e não sabia que tinha dado à luz (se me permite) as suas opiniões sobre o período colonial.
    Não se espante se muita gente não apanhar as ironias com que se refere a coisas como "...estas tradições mais não eram que a expressão sã da multi racial vivência que só o colono português conseguiu desenvolver na sua pluri secular presença em África e os seus anónimos de estimação lhe derem nas orelhas levando a coisa à letra.
    Mas não há-de ser nada!

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  2. Caro João Só,
    esse é um risco que o artista tem que correr se quiser ter uma prestação um bocadinho fora da escrita corrente.
    Além do gozo que dá, naturalmente, ver os caceteiros de serviço passarem por uma metáfora (or else) como se fosse um pedregulho e exibirem a sua "distracção"...
    Um bom Natal para si e vá aparecendo!

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  3. É preciso saber a verdade,para com lealdade, poder escrever com isenção, doa ou não, a quem de direito, por isso como "cidadão de segunda", não rejeito e aceito
    por saber que existia alguma tropelia no ar, dos servos do Salazar...
    Continuo a gostar, Obrigado, Réjo Marpa.

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