quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

ANGOLA Recordações da Tropa - Cap 4 A Escola 60

Iniciado o ano lectivo, matriculámo-nos na Escola 60, que ficava próxima de nossa casa, eu na terceira classe e a minha irmã na quarta.

A escola ficava numa das avenidas principais da cidade, a maior de todas, que ia até à Senhora do Monte. Ficava junto ao parque infantil e a escassas centenas de metros da Administração.


(Desgraçadamente, não encontrei fotos do edifício original, mas Carlos Sanches enviou-me a foto ao lado, com a nova Escola 60; tks, Carlos)


Era um vasto edifício térreo implantado num espaço grande, com muitas árvores, desde goiabeiras e nespereiras até uma enorme mangueira donde pendia um bocado de carril que funcionava como sino para convocar os alunos para as aulas, e para anunciar o seu fim.

Este original carrilhão de um sino só era tocado pelo Canivete, o contínuo já velhote, que tentava impor alguma ordem no recreio dos “minino” assegurando, acima de tudo, que eles não se baldavam para a rua.

Um dos atractivos da rua (para além de umas fugas para o parque, mesmo em frente) era precisamente o edifício da Administração, rua acima, no mesmo passeio da escola. Era aí que os criados que se portavam mal (ou outros altos delinquentes) eram levados para lhes ser aplicado o correctivo em uso nesses tempos: palmatoadas nas palmas das mãos e nas plantas dos pés, quando as mãos ficavam inchadas e insensíveis, não permitindo que o efeito causado fosse proporcional ao número de palmatoadas aplicadas.

O método fazia de tal modo parte da vida doméstica que algumas senhoras, insatisfeitas com o comportamento dos seus moleques, enviavam-nos à Administração com um bilhete em que receitavam o número de palmatoadas a aplicar ao portador.

Os pretos assim castigados ficavam sentados ou deitados por terra até estarem em condições de voltar aos locais de trabalho. E era aí que os íamos ver, não propriamente por gozo, mas por simples curiosidade, a mesma curiosidade, que anos depois, em Nova Lisboa, levava a malta do Liceu a visitar a morgue. Este edifício ficava entre o Liceu e o Hospital, a poucas centenas de metros, e atraía multidões de estudantes, quando corria a notícia de que um morto interessante lá jazia.

Talvez por a escola 60 se situar em plena cidade, os alunos, na esmagadora maioria, eram brancos. Na sala da minha irmã, da 4ª classe, os alunos eram todos brancos (se bem que um deles se chamasse Black, só o era de nome). Na minha sala, a da terceira classe, creio que só havia um cabrito[1].

No ano seguinte, aliás, a situação não mudou muito. Na quarta classe apenas tinha um colega preto, o Fragata, e um cabrito, o Seca. De resto, tudo brancos.

Desconheço o que se passava nas escolas dos arredores da cidade, mas na minha escola, como depois nos vários Liceus que frequentei, a regra era a mesma: a esmagadora maioria dos estudantes era constituída por brancos.

Os poucos estudantes pretos pertenciam, normalmente, a famílias “assimiladas”, como era o caso do Fragata, filho de um enfermeiro bem sucedido e prestigiado, conhecido como o Dr. Fragata. Muitos anos depois, já nos anos 80, voltaria a encontrar o Fragata (filho) como Comissário de Bordo da TAAG, com uma história muito complicada, com diamantes e CIA à mistura.

A generalidade da população tinha as mesmas oportunidades que os brancos (conforme os ideais cristãos e do multiracialismo lusitano) só que não as aproveitava. Mesmo nas cidades não era toda a gente que se podia dar ao luxo de ter os filhos a estudar (mesmo na escola primária), quando podiam estar a trabalhar como criados, chupeteiros, ou simplesmente a ajudar em casa e a tomar conta “dos minino”. Para simplificar, diria que os brancos podiam dar-se a esse luxo, e os pretos não.

Os professores, escusado seria dizer, eram brancos: a professora da terceira classe (uma moça novinha, filha de um militar em comissão), o Professor Candeias (deu aulas à minha irmã; eu não o fiquei a conhecer bem) e o Professor Mourão, que me aturou na quarta classe e que tinha particular gosto em dar reguadas “nas unhas” dos alunos, como ele dizia.

Nesses tempos, essa terapêutica, nas variantes da régua, da “menina dos cinco olhos” e da vara de marmeleiro, era encarada pela generalidade dos pais como aceitável, desde que os resultados escolares fossem bons, e não fosse ministrada com exageros. Havia sempre no ar o espectro da visita do Inspector, figura sinistra e mítica (nunca vi nenhum), mas que curiosamente, não jogava a nosso favor, antes pelo contrário. A referência era do género: “levas nas unhas, e quando o Inspector cá vier, podes fazer queixinhas, a ver se eu me importo!”

Não tenho razões de queixa, nesse campo. Por um lado, era bom aluno e não seria dos mais irrequietos; por outro lado, o professor Mourão inspirava respeito, de modo que quase não precisava de bater (excepto no filho, que tinha a triste sina de ser aluno do próprio pai, o que, como constatei em outras escolas, com outros protagonistas, era mesmo uma triste sina).

Um personagem de destaque nesta comunidade escolar era o professor de canto coral, que acumulava essa função com a de capelão no quartel. Não me lembro do nome do senhor, nem da patente, mas lembro-me distintamente de levar com a vara[2] no toutiço, batida com que sublinhava a pergunta de “quer maisss, quer maisss?” que me dirigia. O capelão exprimia-se com uma dicção sibilante (à moda, diríamos agora, do Dr. Carvalhas), denunciando a sua origem beirã. Eu imitava-o nas partes das cantigas em que tal se proporcionava. Por vezes, está visto, o padre levava a mal...

A talhe de foice, recordo que este capelão deve ter feito uma das primeiras recolhas de canções indígenas, incorporando-as no reportório dos coros que dirigia. Lembro-me da O la mana columuna, etchi ia e do Vivo tchilombo tchetu [3]. As melodias eram muito simples e a letra repetia-se, com pequenas variações. O efeito do coro a cantar a duas vozes era muito agradável, e fazia-me sentir mais próximo da “minha África”, do mato, dos macacos, da cubata, do rio, dos crocodilos...

Nesta Sá da Bandeira tão europeia, só as histórias do Passeio, com leões, onças e hienas me davam um prazer semelhante.

De tempos a tempos a escola era visitada por alguma alta individualidade. Nessa circunstância, agrupávamo-nos por classes, com o professor à frente e ouvíamos com toda a atenção os discursos (ou, pelo menos, dávamos esse ar). Recordo-me duma visita que o governador de Distrito, o então Intendente Américo Castanheira, fez à escola. Fiquei na primeira fila, mesmo à frente da excelência e, de tempos a tempos, aproveitava uma pausa no discurso para meter um sonoro “muito bem!”.

Infelizmente, com o andar dos tempos, passei-me para o futebol e para a bicicleta, e deixei esta prática tão salutar e potenciadora de tachos e prebendas. Se eu soubesse o que sei hoje...
. . . . . . . . . . .

NOTAS:

[1] O mestiço com esta designação era fruto da união de um branco com uma mulata, ou, muito mais raramente, de uma branca com um mulato, tendo o mulato, por sua vez, resultado da união entre preta e branco. Peço desculpa por entrar nestes pormenores tão triviais, para o caso de ser lido pela juventude (temos que lhes ensinar tudo).
[2] este padre era adepto do marmeleiro, creio que por ter maior alcance que a régua e, definitivamente maior alcance que a supra citada “menina dos cinco olhos”.

[3] é claro que não garanto que a ortografia esteja correcta, mas a coisa soava mais ou menos desta maneira.

7 comentários:

  1. fiz uma madrugada dentro buscando uma foto desta escola: niente
    mas revi esta terra
    um destes dias envio-te os links de fotos, se quiseres

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  2. havia o Lino que era um cabrito muito claro, mas falava com sotaque
    em oito anos, na turma, pretos só tive uma colega em Nova Lisboa e se calhar por isso lhe lembro o nome ( e porque se destaca na fotografia) a Edite

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  3. o professor Candeias!! queres que conte? rss

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  4. Manda-me fotografias (scanadas, de preferência); da escola 60 não encontrei nada, nem em casa nem na NET, ou links para outras que encontres na NET.

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  5. Andava à procura da minha escola e aqui a encotri. Recordei, pela sua descrição, o Canivete que no início dos anos 70 ainda lá mantinha a ordem (é ele na foto?, as reguadas da professora Lídia que no meu tempo era escondida do Director que ainda vi uma vez...
    Vera

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  6. Pois é, não sou nem nunca fui adepto de reguadas e caniçadas, mas uma coisa é certa... Estamos cá todos, e pelo que observo,agora só com o dobro é que isto ia lá... Honra seja feita a esses professores, que além de ensinarem o abc, mostravam que 1º vinha a educação... e lá vou eu para o próximo capitulo cantando e rindo...
    Réjo Marpa

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  7. Viva as reguadas e caniçadas e honra aos nossos professores...
    Pelo que vejo, hoje nem o dobro chegava...
    Pela Educação até ao próximo capitulo...
    Réjo Marpa

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