Era pela Radio Brazzaville que sabíamos de algumas coisas que se passavam em Angola, ou com ela relacionadas. Falava-se muito sobre os refugiados de Angola nos Congos e em questões na fronteira de Cabinda com o Congo Brazzaville (ex Congo Francês, mais tarde República Popular do Congo). Falava-se também de novos personagens, uns que mandavam, outros que queriam mandar, como o abade Youlou, o Lumumba (à esquerda), o Kasavubu, o Moisés Tschombé[2], mais tarde o coronel Mobutu.
Um nome habitualmente ouvido nessas emissões era o de Dag Hammarsjoeld (foto a seguir), o nórdico secretário geral da ONU, que andou a mediar conflitos na zona, acabando por morrer num acidente de aviação. A primeira impressão que tive da ONU identifica-se com a sua imagem de homem de acção, com um toque de herói abnegado, em contraste com os seus sucessores cinzentões, e com o mastodonte burocrático em que a ONU se tornou.
Estava-se, nesse tempo, no limiar de uma situação nova, que nunca ocorrera durante os séculos que já levava a presença portuguesa em África: havia várias colónias que tinham ascendido à independência, e havia um sentimento quase generalizado nos fóruns internacionais de que as restantes colónias deviam seguir o mesmo caminho, se essa fosse a vontade expressa dos seus habitantes. Havia, pois, que lhes perguntar o que queriam.
Até então, os territórios africanos eram herdados, doados, divididos pelas potências europeias a seu bel prazer, sem qualquer atenção ao facto de esses territórios, na sua quase totalidade, serem habitados à data da chegada dos europeus. Ao traçar e retraçar as fronteiras não eram sequer tidas em conta as características tribais ou afinidades culturais das populações acontecendo muitas vezes uma tribo (ou mesmo uma nação) ficar dividida por duas colónias dos Senhores europeus. (Na foto ao lado, Leopoldo II , "dono" do Congo Belga).
O direito de posse sobre um território tinha que ver com quem lá chegou primeiro (critério da descoberta), depois com a ocupação efectiva, e mais tarde, com a capacidade para desenvolver a colónia (um dos argumentos usados pela Alemanha para contestar a presença de Portugal no Sul de Angola, candidatando-se, claro!, à sucessão...).
Nenhum dos critérios tinha em conta a vontade das populações, tida como selvagem e incapaz de se governar, sem a mão firme do europeu. Esta arrogância era a atitude corrente para com os seres inferiores, não só pretos, mas também pobres, hispânicos (nos States) ou simplesmente mulheres. Nos países mais desenvolvidos da Europa e na terra do Tio Sam, as mulheres, por muito instruídas que fossem, não tiveram até não há muito tempo,
direito de voto. Em quase todos esses países a sociedade estava (e ainda está, se bem que em menor escala) organizada de modo a que apenas uma elite muito restrita (a nata da nata da nata) tivesse efectiva intervenção na gestão da coisa pública.
Não é de espantar, pois, que os participantes da Conferência de Berlim tivessem mais em que pensar do que na opinião de pretos sujos, iletrados[3], primitivos e ainda por cima gentios!
Após a Segunda Guerra Mundial, com as independências da Índia e da Indonésia, e mais tarde com o fim da teimosia francesa na Indochina, a dominação colonial em África entrou em rápida desagregação. Sobrou Portugal.
Durante séculos, os militares portugueses cobriram-se da glória possível e de medalhas mantendo em respeito hordas ululantes de pretos armados de zagaias, mas sempre inconformados com a dominação portuguesa. As campanhas de África gozavam, então, da aprovação geral, desde que as potências coloniais não se imiscuíssem nos assuntos das colónias vizinhas. (Ao lado, foto do Gungunhana)
Nesse tempo, ninguém daria atenção a um eventual relatório sobre matanças de populações mais ou menos indefesas, nem sobre utilização de trabalho mais ou menos escravo. Só em casos excepcionais uma potência colonial permitiria que cidadãos seus fornecessem armas modernas ao gentio[4]. A repressão dos régulos insurrectos estava, pois, facilitada.
No início da década de sessenta, Angola estava já em boa parte rodeada por países independentes, antigas colónias. Uma francesa (Congo Brazza), outra belga (Congo Kinshasa, depois República do Zaire) e uma outra inglesa (Zâmbia, após desmembramento da efémera Federação das Rodésias e Niassalândia). Só a sul havia uma fronteira amiga, o Sudoeste Africano, sob a tutela da África do Sul desde a 2ª Guerra Mundial.
O sentimento de repúdio que o preto nutria pelo ocupante estrangeiro que lhe roubava a terra, cobrava um imposto arbitrário, impunha condições de trabalho desumanas e, ainda por cima, o tratava à porrada, tinha, finalmente, condições para dar origem a uma verdadeira resistência nacional organizada, armada e apoiada do exterior.
A presença portuguesa em África, nos moldes tradicionais, tinha os dias contados.
Salazar tentou contrariar os ventos da História (a que se referia com desdém) mandando uma geração inteira para uma guerra iníqua e sem futuro.
Os primeiros movimentos de tropas, prevenindo a tormenta que se aproximava, consistiram no reforço do dispositivo de defesa de Cabinda, à custa dos regimentos da guarnição da província, ainda em 1960.
De Sá da Bandeira seguiu um destacamento que se distribuiu pelo Dinge[5] e Chiaca, esta última terreola em pleno coração do Maiombe[6]. Pretendia-se evitar que a agitação nos Congos, onde a Abako tinha papel de destaque, se propagasse para o interior de Cabinda. Esse objectivo foi, na generalidade, conseguido, não se tendo registado no enclave nem sombra do que viria a acontecer meses mais tarde em Luanda e no norte de Angola.
(Veja os resumos dos episódios sobre a Guerra Colonial; os dois primeiros sobre os massacres da UPA 1º Episódio; 2º Episódio; 3º Episódio; se quiser ver os episódios seguintes que lhe interessarem, seleccione-os directamente do You Tube, a partir de um destes episódios)
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NOTAS:
[1] Tinha até uma rubrica em que se ensinava o ouvinte a falar francês (par votres oreilles, parlez le français), língua caída em desuso mas muito útil naqueles tempos, em particular em África.
[2] estes personagens entravam em várias canções com versos do tipo “O Lumumba e o Kasavubu andam às turras por causa da ONU” “Quem manda sou eu, quem manda és tu; quem manda é o Kasavubu”, com música do Mustafá. Havia também versões hard core, que me dispenso de pormenorizar.
[3] O próprio PCP, farol da luta pelas liberdades (umas mais, outras só assim assim, outras nem tanto...), se lhes referia em pelo século XX como “aquela pretalhada ignara”.
[4] A primeira grande Guerra foi um desses casos excepcionais; a Alemanha fartou-se de distribuir armas aos Cuanhamas no Sul de Angola, como o fez no Norte de Moçambique e nas colónias inglesas que confinavam com o Tanganica.
[5] O meu pai seguiu na companhia que se instalou no Dinge, e por lá ficou pouco menos de um ano.
[6] O Maiombe era, nesse tempo, praticamente uma floresta virgem, pouco penetrada pelo Homem, sendo ainda frequente a presença de gorilas.
Obrigado pelos livros e revistas, recebidos hoje.
ResponderEliminarSeu pai em Cabinda, eu cabo miliciano em Noqui, um mês após a independência do Congo Belga (junho 1960).
A confusão que se criou naquele território desde o primeiro dia de independência até hoje, é que fez com que muitos angolanos ficassem cépticos quanto às intenções dos movimentos independentistas de Angola.
Foi em Noqui que ví os primeiros retornados. Eram Belgas. Passados 15 anos calhou a outros.
Cumprimentos
E se não tivessem posto os aviões, a História seria outra... O titulo talvez fosse: A Guerra que Portugal Ganhou... UMA ANGOLA MULTI-RACIAL INDEPENDENTE...
ResponderEliminarRéjo Marpa