domingo, 28 de dezembro de 2008

ANGOLA Recordações da Tropa - Cap 7 A Tropa

As unidades militares existentes em Angola eram constituídas por um pequeno número de regimentos, sediados nas principais capitais de Distrito, complementadas por unidades de diversas especialidades. Os efectivos compreendiam um núcleo de graduados e especialistas que enquadravam tropa de recrutamento local que, após a recruta e especialidade, ficava apta (“pronta” é o termo consagrado) a prestar serviço.

Quando ocorriam problemas que os Chefes de Posto, com os seus sipaios, não conseguiam resolver, organizavam-se expedições, a partir das cidades onde os regimentos estavam sediados, para repor a ordem, acalmar o indígena e submeter o régulo revoltado. Em caso de necessidade, quando as unidades existentes não davam conta do recado, era enviado um destacamento da Metrópole.

Assim sucedeu durante a Primeira Guerra Mundial, em que foram enviados dois batalhões para fazer face às pretensões dos alemães da Damaralândia (depois Sudoeste Africano, actual Namíbia). Assim sucedeu depois de 1961 quando a guerra pela independência se generalizou e os efectivos tiveram que ser redimensionados e o dispositivo no terreno ajustado.

É curioso referir que durante os combates entre portugueses e alemães, os pretos (Cuanhamas, Herreros e outros) aproveitaram para fazer verdadeiras razias na tropa portuguesa em retirada, enfraquecida pelos combates, pela doença e pela sede[1]. A resistência da população de Angola contra o invasor europeu só se atenuou nos períodos em que o equilíbrio de forças lhe era manifestamente desfavorável. De resto, a penetração era acordada com os régulos e sobas, na base da troca de favores e presentes, ou imposta pela força onde a força existia (ou seja, apenas no litoral até fins do século XIX)[2].

O caso de Silva Porto é paradigmático. O sertanejo, capitão mór do Bié, ficara na miséria em 1880, quando um grande incêndio nas suas casas e armazéns o deixou despojado de bens, tirando-lhe todo o peso negocial junto do soba do Bié. Anos mais tarde, em 1890, quando Silva Porto tentava obter do soba autorização para a coluna de Paiva Couceiro atravessar os territórios do régulo, este enxovalhou-o e humilhou-o (consta que lhe chamou traidor e lhe passou a mão pelas barbas...). Amargurado, sentindo-se desonrado, Silva Porto suicidou-se.

O domínio colonial era, pois, muito precário e o decantado portuguesismo que imperava no ultramar era pouco menos que pura ficção...

Voltando a 1960, o recrutamento apoiava-se no sistema administrativo que cobria todo o território, devendo os chefes de posto promover a ida dos mancebos à inspecção, quando atingissem a idade própria, com vista à sua incorporação ou dispensa do serviço militar.

É claro que o recenseamento era bastante imperfeito, de modo que a expressão tão usada na Metrópole de “ir às sortes”, assumia um novo e mais literal sentido nestas longínquas paragens. Era o olho clínico do Chefe de Posto que determinava se um mancebo tinha dezoito anos, se tinha a necessária robustez física, se era amparo de mãe, se era voluntário. (As fotos anterior e seguinte foram tiradas do livro A Colonização do Sul de Angola de F. Cerviño Padrão)

O resultado desta triagem era, muitas vezes, um grupo de pretos assustados e sem perceberem muito bem ao que vinham (mal arranhavam o português). Os menos voluntários vinham convenientemente amarrados para não fugirem pelo caminho. Dizia-se, na altura, que eram recrutas apanhados a laço.

Era uma tropa que ficava razoavelmente barata, pois a soldadesca vivia em alojamentos espartanos, em casernas onde se alinhavam beliches com tarimba de madeira e cobertor (porque no mato a cama e o colchão não estavam nos hábitos daquelas gentes), fardava quase sempre calção e camisa de zuarte (era-lhes naturalmente distribuído o restante fardamento para quando estavam de guarda, para exercícios e marchas e pouco mais[3]).

O rancho estava de acordo com os hábitos da terra (pirão de milho ou feijão e peixe seco a nadar em óleo de palma). Havia, pois, a preocupação louvável de não impor aos soldados hábitos dispendiosos que não pudessem custear quando voltassem à vida civil[4]. Esta ementa não era servida aos soldados europeus e muito menos nas messes de oficiais e sargentos, mantendo-se no rancho a clara distinção entre pretos e brancos.

O serviço militar tinha, contudo, um lado positivo: dava ao soldado uma perspectiva da sua terra muito diferente dos horizontes limitados do quimbo[5], ensinava-lhe o português e, com um pouco de sorte, dava-lhe acesso à escolas regimentais onde lhe ministrava as primeiras letras e os números.

As questões disciplinares eram tratadas de modo um tanto fora do que prescrevia o RDM[6]. O preto era tido como uma criatura de índole especial, com uma filosofia de vida diferente da do branco que, entre outras coisas, não lhe permitia sentir-se punido quando o confinavam ao quartel (ou mesmo à prisão do quartel), onde lhe era permitido dormir e comer a horas certas e sem coacção de maior. Considerava-se que só com porrada percebiam que tinham feito mal, de modo era a porrada que substituía grande parte das penas prescritas no RDM.

O instrumento mais usado para manter a disciplina era a palmatória, nesta tropa tal como na escola primária, tal como na Administração. As palmatoadas eram aplicadas na palma das mãos e nas plantas dos pés, quando aquelas ficavam inchadas e insensíveis.

Como não podia deixar de ser, o meu pai, sensível a estas coisas, ficava pior que estragado quando ouvia uma sessão de palmatoadas. Os efeitos sonoros não eram problema (a polícia não viria em socorro de quem gritava...), pois a terapêutica era de uso corrente e generalizado, e os gritos do justiçado (?) até ajudavam a manter em respeito os ouvintes, eles próprios potenciais protagonistas.

A recusa do meu pai em assistir a estes espectáculos, a recusa muito mais firme em participar neles, os resmungos e alguns comentários que se atreveu a fazer, deram nas vistas do comandante de companhia, capitão Oliveira[7], que passou a chateá-lo amiúde, chamando-lhe o “nosso sargento democrata”, e, mais tarde, o “nosso sargento comunista”.

Um comuna, nos tempos que vão correndo, é tido, quando muito, como uma relíquia do passado, e não tanto como um ser perverso, subversivo e comedor de criancinhas. Mas naquele tempo, um comunista era um inimigo do regime, um tipo perigoso que gritava “Viva a Rússia!” à menor provocação e que estava empenhado em que a nosso Portugal, pobrezinho mas asseado onde cada um conhecia o seu lugar[8], se tornasse numa bandalheira onde as pessoas de bem seriam confundidas com a ralé, e ninguém mais respeitaria aqueles que, pela ordem natural das coisas, estão muito acima da plebe[9].

Ser apontado como comunista era, pois, perigoso, mesmo que essa acusação derivasse do simples facto de achar que era uma selvajaria bater nos pretos.

Um belo dia, o Ginja dirigiu-se ao meu pai, mais uma vez, como o “nosso sargento comunista”, e desencadeou uma reacção explosiva, como se a pressão acumulada numa panela tivesse feito saltar a tampa. Um tinteiro voou na direcção das ventas do tratante[10], creio que não acertou, o meu pai terá gritado qualquer coisa como “este sacana desgraça-me, mas eu dou-lhe um tiro” e correu cada um para o seu lado: o meu pai para a arrecadação para sacar uma pistola, o Ginja, esbaforido pela parada fora, a refugiar-se na casa da guarda.

Felizmente o quarteleiro, um soldado preto que se apercebeu do que se passava, fechou-se na arrecadação e recusou-se a dar a arma que o meu pai queria.

A cena terminou com o meu pai a bater na porta da casa da guarda e a gritar, o Ginja lá dentro de porta aferrolhada (borrado de medo), e a plateia a gozar o prato. Valeu ao meu pai o facto de a tropa e a Pide nunca terem tido um relacionamento muito cordial, o Ginja ser pouco bem visto e, acima de tudo, o comandante do Regimento ser o Tenente Coronel Faustino Duarte. Este antigo craque de futebol da Académica de Coimbra (até entrava nas colecções de cromos da época) fez a sua avaliação da situação e achou que o meu pai precisava era de um calmante, uma horita a descansar na enfermaria, uns dias em casa de baixa e ... mais nada.

É bem possível que a ida para Cabinda, pouco tempo depois, tenha derivado do incidente. De qualquer modo, se o RDM ou, pior ainda, se o CJM[11] tivesse sido aplicado, as consequências teriam sido outras.

. . . . . . . .

NOTAS:

[1] Ernesto Moreira dos Santos, narrando os combates em Naulila em 1915 e a subsequente retirada da nossa tropa, refere “... o gentio aparecia e, traiçoeiramente, matava-os massacrando-os, arrancando-lhes os olhos, decepando-lhes os membros...horrível...”

[2] No Anexo 1 este assunto está tratado com mais profundidade, caso o leitor se interesse pela matéria.

[3] Um adorno pitoresco, caído em desuso na década de sessenta, era o cofió, um barrete vermelho em forma de tronco de cone (vê-se muito em filmes com cenas passados no Cairo) que a tropa indígena usava quando fazia serviço de sentinela. Os brancos nascidos ou não nas colónias não o usavam.

[4] O leitor já deve ter notado que quem escreve é uma pessoa bem intencionada, sempre pronta a descortinar nobres intenções onde elas não existem...

[5] Aldeia. O termo sanzala tem o mesmo sentido, e é de uso generalizado em quase toda a Angola.

[6] Regulamento de Disciplina Militar, uma espécie de bíblia onde as situações mais abstrusas estão previstas. Não inclui matéria do foro criminal.

[7] personagem insignificante, com a alcunha sugestiva de Ginja, tido por informador da Pide (ainda longe de se travestir de DGS) e grande entusiasta da porrada no soldado (na condição de que não se atrevesse a defender-se). Foi, muito justamente, saneado da tropa, logo a seguir ao 25 de Abril.

[8] se fosse assaltado por dúvidas sobre qual o seu lugar, podia facilmente esclarecer-se com as inúmeras polícias e organizações afins que proliferavam.

[9] Assim rezava a cartilha não escrita que regia as relações sociais

[10] Lembram-se da versão hard core da ceia dos Cardeais?

[11] Código de Justiça Militar, que tratava da matéria criminal. A agressão a um superior (mesmo sem o tinteiro ter acertado), injúrias e perseguição (mesmo sem arma de fogo) caíam direitinho sob a alçada do CJM. As penas aplicáveis e as consequências sobre a carreira, teriam sido, certamente, contundentes.

2 comentários:

  1. Em 1961 esse cofió, que seria cópia ou dos franceses ou ingleses, era usado pelos soldados I (indígenas), para fazer sentinela, pelo menos ao palácio do Governador Geral, sendo que o 1º cabo e furriel, usavam capacete de cortiça. Em 61 já havia cabos e furrieis de todas as cores.
    Era uma imagem colonial muito caracteristica (como os filmes do norte de africa), de côr caqui, e que terminou com a vinda dos camuflados.

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  2. Como era diferente a guerra no Lobito... Como era diferente o trato... Como era diferente...
    Lembro-me, havia mais tribalismo que racismo, este quase ou nada se sentia...
    Como coisa boa relembro que existiram os FLECHAS, que eram uma tropa de elite formada só de negros... Lembra-me que eram o orgulho dos jovens... Lembra-me a minha juventude... Réjo Marpa

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