Quando ocorriam problemas que os Chefes de Posto, com os seus sipaios, não conseguiam resolver, organizavam-se expedições, a partir das cidades onde os regimentos estavam sediados, para repor a ordem, acalmar o indígena e submeter o régulo revoltado. Em caso de necessidade, quando as unidades existentes não davam conta do recado, era enviado um destacamento da Metrópole.
Assim sucedeu durante a Primeira Guerra Mundial, em que foram enviados dois batalhões para fazer face às pretensões dos alemães da Damaralândia (depois Sudoeste Africano, actual Namíbia). Assim sucedeu depois de 1961 quando a guerra pela independência se generalizou e os efectivos tiveram que ser redimensionados e o dispositivo no terreno ajustado.
É curioso referir que durante os combates entre portugueses e alemães, os pretos (Cuanhamas, Herreros e outros) aproveitaram para fazer verdadeiras razias na tropa portuguesa em retirada, enfraquecida pelos combates, pela doença e pela sede[1]. A resistência da população de Angola contra o invasor europeu só se atenuou nos períodos em que o equilíbrio de forças lhe era manifestamente desfavorável. De resto, a penetração era acordada com os régulos e sobas, na base da troca de favores e presentes, ou imposta pela força onde a força existia (ou seja, apenas no litoral até fins do século XIX)[2].
O caso de Silva Porto é paradigmático. O sertanejo, capitão mór do Bié, ficara na miséria em 1880, quando um grande incêndio nas suas casas e armazéns o deixou despojado de bens, tirando-lhe todo o peso negocial junto do soba do Bié. Anos mais tarde, em 1890, quando Silva Porto tentava obter do soba autorização para a coluna de Paiva Couceiro atravessar os territórios do régulo, este enxovalhou-o e humilhou-o (consta que lhe chamou traidor e lhe passou a mão pelas barbas...). Amargurado, sentindo-se desonrado, Silva Porto suicidou-se.
O domínio colonial era, pois, muito precário e o decantado portuguesismo que imperava no ultramar era pouco menos que pura ficção...
Voltando a 1960, o recrutamento apoiava-se no sistema administrativo que cobria todo o território, devendo os chefes de posto promover a ida dos mancebos à inspecção, quando atingissem a idade própria, com vista à sua incorporação ou dispensa do serviço militar.
É claro que o recenseamento era bastante imperfeito, de modo que a expressão tão usada na Metrópole de “ir às sortes”, assumia um novo e mais literal sentido nestas longínquas paragens. Era o olho clínico do Chefe de Posto que determinava se um mancebo tinha dezoito anos, se tinha a necessária robustez física, se era amparo de mãe, se era voluntário. (As fotos anterior e seguinte foram tiradas do livro A Colonização do Sul de Angola de F. Cerviño Padrão)
O resultado desta triagem era, muitas vezes, um grupo de pretos assustados e sem perceberem muito bem ao que vinham (mal arranhavam o português). Os menos voluntários vinham convenientemente amarrados para não fugirem pelo caminho. Dizia-se, na altura, que eram recrutas apanhados a laço.
Era uma tropa que ficava razoavelmente barata, pois a soldadesca vivia em alojamentos espartanos, em casernas onde se alinhavam beliches com tarimba de madeira e cobertor (porque no mato a cama e o colchão não estavam nos hábitos daquelas gentes), fardava quase sempre calção e camisa de zuarte (era-lhes naturalmente distribuído o restante fardamento para quando estavam de guarda, para exercícios e marchas e pouco mais[3]).
O rancho estava de acordo com os hábitos da terra (pirão de milho ou feijão e peixe seco a nadar em óleo de palma). Havia, pois, a preocupação louvável de não impor aos soldados hábitos dispendiosos que não pudessem custear quando voltassem à vida civil[4]. Esta ementa não era servida aos soldados europeus e muito menos nas messes de oficiais e sargentos, mantendo-se no rancho a clara distinção entre pretos e brancos.
O serviço militar tinha, contudo, um lado positivo: dava ao soldado uma perspectiva da sua terra muito diferente dos horizontes limitados do quimbo[5], ensinava-lhe o português e, com um pouco de sorte, dava-lhe acesso à escolas regimentais onde lhe ministrava as primeiras letras e os números.
As questões disciplinares eram tratadas de modo um tanto fora do que prescrevia o RDM[6]. O preto era tido como uma criatura de índole especial, com uma filosofia de vida diferente da do branco que, entre outras coisas, não lhe permitia sentir-se punido quando o confinavam ao quartel (ou mesmo à prisão do quartel), onde lhe era permitido dormir e comer a horas certas e sem coacção de maior. Considerava-se que só com porrada percebiam que tinham feito mal, de modo era a porrada que substituía grande parte das penas prescritas no RDM.
O instrumento mais usado para manter a disciplina era a palmatória, nesta tropa tal como na escola primária, tal como na Administração. As palmatoadas eram aplicadas na palma das mãos e nas plantas dos pés, quando aquelas ficavam inchadas e insensíveis.
Como não podia deixar de ser, o meu pai, sensível a estas coisas, ficava pior que estragado quando ouvia uma sessão de palmatoadas. Os efeitos sonoros não eram problema (a polícia não viria em socorro de quem gritava...), pois a terapêutica era de uso corrente e generalizado, e os gritos do justiçado (?) até ajudavam a manter em respeito os ouvintes, eles próprios potenciais protagonistas.
A recusa do meu pai em assistir a estes espectáculos, a recusa muito mais firme em participar neles, os resmungos e alguns comentários que se atreveu a fazer, deram nas vistas do comandante de companhia, capitão Oliveira[7], que passou a chateá-lo amiúde, chamando-lhe o “nosso sargento democrata”, e, mais tarde, o “nosso sargento comunista”.
Um comuna, nos tempos que vão correndo, é tido, quando muito, como uma relíquia do passado, e não tanto como um ser perverso, subversivo e comedor de criancinhas. Mas naquele tempo, um comunista era um inimigo do regime, um tipo perigoso que gritava “Viva a Rússia!” à menor provocação e que estava empenhado em que a nosso Portugal, pobrezinho mas asseado onde cada um conhecia o seu lugar[8], se tornasse numa bandalheira onde as pessoas de bem seriam confundidas com a ralé, e ninguém mais respeitaria aqueles que, pela ordem natural das coisas, estão muito acima da plebe[9].
Ser apontado como comunista era, pois, perigoso, mesmo que essa acusação derivasse do simples facto de achar que era uma selvajaria bater nos pretos.
Um belo dia, o Ginja dirigiu-se ao meu pai, mais uma vez, como o “nosso sargento comunista”, e desencadeou uma reacção explosiva, como se a pressão acumulada numa panela tivesse feito saltar a tampa. Um tinteiro voou na direcção das ventas do tratante[10], creio que não acertou, o meu pai terá gritado qualquer coisa como “este sacana desgraça-me, mas eu dou-lhe um tiro” e correu cada um para o seu lado: o meu pai para a arrecadação para sacar uma pistola, o Ginja, esbaforido pela parada fora, a refugiar-se na casa da guarda.
Felizmente o quarteleiro, um soldado preto que se apercebeu do que se passava, fechou-se na arrecadação e recusou-se a dar a arma que o meu pai queria.
A cena terminou com o meu pai a bater na porta da casa da guarda e a gritar, o Ginja lá dentro de porta aferrolhada (borrado de medo), e a plateia a gozar o prato. Valeu ao meu pai o facto de a tropa e a Pide nunca terem tido um relacionamento muito cordial, o Ginja ser pouco bem visto e, acima de tudo, o comandante do Regimento ser o Tenente Coronel Faustino Duarte. Este antigo craque de futebol da Académica de Coimbra (até entrava nas colecções de cromos da época) fez a sua avaliação da situação e achou que o meu pai precisava era de um calmante, uma horita a descansar na enfermaria, uns dias em casa de baixa e ... mais nada.
É bem possível que a ida para Cabinda, pouco tempo depois, tenha derivado do incidente. De qualquer modo, se o RDM ou, pior ainda, se o CJM[11] tivesse sido aplicado, as consequências teriam sido outras.
. . . . . . . .
NOTAS:
[1] Ernesto Moreira dos Santos, narrando os combates em Naulila em 1915 e a subsequente retirada da nossa tropa, refere “... o gentio aparecia e, traiçoeiramente, matava-os massacrando-os, arrancando-lhes os olhos, decepando-lhes os membros...horrível...”
[2] No Anexo 1 este assunto está tratado com mais profundidade, caso o leitor se interesse pela matéria.
[3] Um adorno pitoresco, caído em desuso na década de sessenta, era o cofió, um barrete vermelho em forma de tronco de cone (vê-se muito em filmes com cenas passados no Cairo) que a tropa indígena usava quando fazia serviço de sentinela. Os brancos nascidos ou não nas colónias não o usavam.
[4] O leitor já deve ter notado que quem escreve é uma pessoa bem intencionada, sempre pronta a descortinar nobres intenções onde elas não existem...
[5] Aldeia. O termo sanzala tem o mesmo sentido, e é de uso generalizado em quase toda a Angola.
[6] Regulamento de Disciplina Militar, uma espécie de bíblia onde as situações mais abstrusas estão previstas. Não inclui matéria do foro criminal.
[7] personagem insignificante, com a alcunha sugestiva de Ginja, tido por informador da Pide (ainda longe de se travestir de DGS) e grande entusiasta da porrada no soldado (na condição de que não se atrevesse a defender-se). Foi, muito justamente, saneado da tropa, logo a seguir ao 25 de Abril.
[8] se fosse assaltado por dúvidas sobre qual o seu lugar, podia facilmente esclarecer-se com as inúmeras polícias e organizações afins que proliferavam.
[9] Assim rezava a cartilha não escrita que regia as relações sociais
[10] Lembram-se da versão hard core da ceia dos Cardeais?
[11] Código de Justiça Militar, que tratava da matéria criminal. A agressão a um superior (mesmo sem o tinteiro ter acertado), injúrias e perseguição (mesmo sem arma de fogo) caíam direitinho sob a alçada do CJM. As penas aplicáveis e as consequências sobre a carreira, teriam sido, certamente, contundentes.
Em 1961 esse cofió, que seria cópia ou dos franceses ou ingleses, era usado pelos soldados I (indígenas), para fazer sentinela, pelo menos ao palácio do Governador Geral, sendo que o 1º cabo e furriel, usavam capacete de cortiça. Em 61 já havia cabos e furrieis de todas as cores.
ResponderEliminarEra uma imagem colonial muito caracteristica (como os filmes do norte de africa), de côr caqui, e que terminou com a vinda dos camuflados.
Como era diferente a guerra no Lobito... Como era diferente o trato... Como era diferente...
ResponderEliminarLembro-me, havia mais tribalismo que racismo, este quase ou nada se sentia...
Como coisa boa relembro que existiram os FLECHAS, que eram uma tropa de elite formada só de negros... Lembra-me que eram o orgulho dos jovens... Lembra-me a minha juventude... Réjo Marpa