segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

ANGOLA Recordações da Tropa - Cap 3 Um Colono Típico


Depois de alguns dias instalados na Pensão Popular, vetusto edifício colonial com grandes varandas e telhados de zinco, junto ao picadeiro, arranjámos casa junto à fábrica Favorita (farinhas, bolachas e massas alimentícias), uma das poucas unidades industriais existentes na cidade, naquele tempo.

A nossa casa era um dos dois anexos térreos de uma residência com um enorme quintalão, onde havia diversas árvores de fruto (tropicais e mediterrânicas, o que era comum naquele clima), pocilgas e capoeiras. Havia também um par de barracões onde o vizinho que ocupava o outro anexo desenvolvia actividades industriais, com que complementava os seus proventos de talhante e proprietário de gado bovino (à data contava já com uma manada considerável).

Os senhorios, que moravam na casa cujos anexos nos estavam alugados, eram dois velhotes oriundos da região de Aveiro, de Vagos. Tinham um neto, bastante mais velho que eu, que vivia fora de Sá da Bandeira (no mato, portanto), onde vinha de longe em longe. Tinha um criado (preto, como é óbvio) com o qual treinava artes marciais (designação que naquele tempo ainda não era usada). Falavam entre si numa linguagem rica em expressões que eu não entendia (mumuila) misturadas com português. Pareciam dar-se lindamente, se bem que lutassem quase constantemente, às vezes com recurso à catana (neste capítulo ficavam-se pela ameaça rosnada de qualquer coisa como “aicodenga no catana!”[1]).

O nosso vizinho talhante, o Sr. Licínio de Magalhães, estava em Angola desde miúdo e começou a trabalhar antes de aprender as primeiras letras. Como resultado dessa precocidade, não aprendeu a ler. Nunca dei por que se atrapalhasse com os números, essenciais nas actividades a que se dedicava. Tratava os pretos com a superioridade natural que lhe advinha de eles serem “insublizados”[2], mandriões e estarem sempre prontos a roubar o branco.

Era um personagem pitoresco, alegre e exuberante, cheio de histórias que me contava ao fim da tarde, antes que a minha mãe me chamasse para o jantar. Também me ensinou os rudimentos do dialecto da região, a que chamavam mumuila.

Vivia com uma prima, a D. Marta, que fugiu com ele da casa dos pais, em Vila da Ponte ou Caluquembe (não me lembro ao certo), quando tinha catorze anos. Ainda não tinham casado, porque o sr. Magalhães não estava liberto de uma ligação anterior, que não passara da primeira noite. Depois da boda, ao chegar ao leito conjugal, constatou que a noiva não estava “como deve ser”. O escândalo foi imediato e bem à medida do temperamento do noivo: a rapariga foi devolvida aos pais com protestos indignados (e exaltados) por o terem tentado enganar, impingindo-lhe “material já usado”.

A D. Marta já estava naquela altura com quase vinte anos, e a fuga de casa, pela mão do primo, já estava há muito perdoada. De tempos a tempos vinha passar uns dias com ela uma irmã mais nova (mais pequerrucha, pelo que lhe chamávamos Corrucha, e nunca lhe conheci outro nome). Falava “à preto” e andava descalça, para grande raiva da irmã que achava que ela era bicho do mato e se comportava como os pretos. Note-se que a própria D. Marta, depois de se certificar que o marido não estava por perto, largava os sapatos e trepava comigo às laranjeiras e nespereiras, com evidente gozo e com tanta ou mais destreza que eu...

Quase todas as semanas, o pastor que lhe guardava o rebanho vinha prestar contas ao Sr. Licínio de Magalhães, e abastecer-se do necessário. O Passeio[3] era um cuanhama já velho (um seculu)[4] que aproveitava a vinda à cidade para beber o seu copito. Tratava-me por tchindere (patrão, branco) e contava histórias do mato, das hienas, das onças e leões, que iam perdendo o nexo à medida que os copitos se acumulavam, até que o fio da história cessava de todo. Eram histórias cheias de magia, daquela África que eu tinha imaginado e que não havia meio de encontrar.

De tempos a tempos, aparecia um sócio do Sr. Magalhães, herr Schmidt (a quem chamávamos sr. Smite), um alemão gordo e sessentão, carregando imenso nos errres, para não desmentir o estereotipo. Era veterano de multas e cadeias, pois teve o azar de viver na época e local errados. Era salsicheiro e fabricante de bebidas alcoólicas (na altura não se usava muito o termo mixordeiro), o que, a par do azeite e do vinho que atrás referi, eram produtos que (ainda) figuravam no índex salazarista. Só a metrópole os podia produzir, sendo crime fazer concorrência às fábricas do Portugal Continental.

E assim, o sr. Smite e o sr. Magalhães, utilizando as modelares instalações fabris que atrás referi (os barracões e quintalão), produziam enchidos de boa qualidade[5] que eram distribuídos em bacias de folha, cobertas com panos para não dar nas vistas, que os serventes pretos levavam à cabeça até casa dos clientes.

Para além dos enchidos, estes dinâmicos empresários produziam uma beberagem à base de sumo de laranja com açúcar, fermentado em grandes pipos de madeira. A laranjas da região eram boas, posso atestá-lo: nunca bebi tanto sumo de laranja como naqueles tempos. Como depois das aulas não tinha nada que fazer (andava na terceira classe e os trabalhos de casa eram despachados em dois tempos) dava uma mãozinha no corte das laranjas, no abastecimento da prensa (espremedor), na pesagem do açúcar, enfim, em tudo o que não implicasse força, estatura ou conhecimentos especiais (esta última parte era, claro, com o sr. Smite).

A minha colaboração foi sumariamente dispensada no dia em tive a infeliz ideia de escrever na parede exterior do barracão-fábrica, em letras brancas bem visíveis, as palavras MISTER SMITH, orgulhoso dos meus nascentes conhecimentos de inglês. O alemão ia tendo uma apoplexia, fartou-se de gritar na sua língua enquanto eu esborratava o meu trabalho, de modo a torná-lo ilegível. Do linguajar incompreensível do sr. Smite, houve uma palavra que ele repetiu várias vezes, interrompendo o discurso e olhando-me com os olhos muito abertos: “Roçadas!”.

O Roçadas era uma vilória mais para sul, nas margens do rio Cunene. Ainda não havia ponte, de modo que a travessia fazia-se em jangada. No tempo das chuvas, o rio galgava as margens, muito largo e caudaloso, tornando a sua travessia uma aventura e pêras. Quando ocorriam grandes cheias, a margem sul ficava inacessível por uns tempos.

Essa terreola foi escolhida para instalar uma prisão que recebia principalmente presos políticos. Era uma espécie de Tarrafal em Angola para onde passavam, de tempos a tempos, autocarros com levas de condenados, que escalavam Sá da Bandeira e pernoitavam no quartel[6], antes de seguirem viagem.

A prisão recebia também presos de delito comum “especiais”, como era o caso de brancos que praticavam delitos de certo vulto, no campo das actividades económicas. O sr. Smite já conhecia as amenidades do local e estava pouquíssimo interessado em voltar para lá.

Depois deste incidente, é claro que eu deixei de me chegar à fabriqueta, e desviava-me prudentemente quando o alemão passava por mim, resmungando imensos “ach!” e abanando a cabeça.

Muitos anos depois, já na década de 80, voltei a saber novas do Sr. Magalhães. Foi envolvido num dos mega processos dos tempos pós independência, que incidiu sobre o tráfico de diamantes e, por acréscimo, de troca ilegal de moeda[7]. Nessa altura estava velho e adoentado e teria tentado comprar escudos portugueses para vir para Portugal tratar-se. Foi burlado (não chegou a receber os escudos) e ainda por cima acabou por ser apanhado por tabela, quando o tipo a quem entregou largos milhões de kwanzas foi dentro. Creio que acabou por ser absolvido ou teve uma pena muito leve (o alvo principal eram mesmo os traficantes de diamantes).

O sr. Magalhães pode muito bem servir de protótipo do colono que demandava Angola antes do surto de desenvolvimento serôdio que a guerra desencadeou. Provenientes do interior de Portugal, zonas rurais, com um índice de escolaridade baixo ou nulo e, em geral, muito pobres, os colonos não dispunham de qualquer apoio governamental (excepção feita aos colonatos de iniciativa estatal).

Começavam por se alojar em casa de pessoas de família ou conhecidas, muitas vezes da santa terrinha, de cuja carta de chamada necessitaram para conseguirem autorização para irem para África. Conceitos como o de livre circulação, mesmo dentro do espaço dito nacional, eram coisa estranha, naqueles tempos, que feriam a sensibilidade do Prof. Salazar.

Chegado a Angola, o colono começava imediatamente a trabalhar, normalmente para quem viabilizara a viagem, e ao mesmo tempo, ia desenvolvendo um negociozito particular no ramo da agricultura, pecuária (principalmente no sul), pequeno comércio ou pequena indústria (como ilustra o caso do Sr. Magalhães). Com o passar do tempo, se o negócio particular corresse bem, o colono acabava por cortar o cordão umbilical com o patrão (a quem entretanto pagara as dívidas que contraíra para a viagem e instalação) e dedicava-se a tempo inteiro à sua fazenda, à sua loja de comércio geral, à sua fabriqueta.

Estes negócios, se bem que carecessem de apoios estatais, eram largamente favorecidos pela mão de obra barata e pouco conflituosa (muitas vezes pouco menos que escrava) que abundava nas redondezas. Em caso de maka[8] que o colono não conseguisse resolver, o chefe de posto entrava em acção repondo rapidamente o respeito pelo branco e garantindo que a vontade de trabalhar voltava tão depressa quanto o inchaço das mãos (e dos pés, em casos mais rebarbativos) o permitisse.

Boa parte dos colonos como os que acima descrevi chegavam a Angola sem família, não só por a viagem ser uma aventura de desfecho incerto, mas, por serem jovens e de poucas posses, não terem ainda casado.

Os bem sucedidos buscavam mulher em Portugal, o que não os impedia de entretanto se terem “amigado” com uma ou mais pretas que lhes iam dando descendência e aquecendo os pés, nas noites de cacimbo. Alguns chegavam mesmo a casar com uma preta, constituindo casais mistos que tanto faziam sonhar os teóricos da civilização multiracial e pluricontinental, que viam nesses casais a prova de que o povo português não é racista.

Não me parece que prove nada: a distância intelectual entre o colono e o nativo era, por via de regra, muito pequena e a superioridade que o colono sentia ter sobre o preto vinha apenas realçar o ascendente que em Portugal o homem tinha (e ainda tem...) sobre a mulher, em particular entre os mais pobres. O cabeça de casal, o chefe de família, dispunha de um poder absoluto e incontestado sobre o resto da família, a começar pela mulher, fosse ela branca ou preta.

Neste quadro, não se encaixariam, de modo algum, casamentos mistos entre preto e branca[9], que só depois do 25 de Abril começaram a ser comuns. Os filhos do casal misto, mulatos, tinham uma posição semelhante à dos brancos, no que toca ao ascendente sobre os pretos, excepto num pormenor: os casamentos entre mulato e branca eram pouco comuns, ao contrário do que sucedia com casamentos entre mulata e branco. O que é significativo...

. . . . . . . . . .

NOTAS:

[1] Que é como quem diz “levas com a catana, que é um gosto...”

[2] não foi às primeiras que percebi que este interessante vocábulo era uma versão cafrealizada de incivilizado...

[3] Nomes deste tipo eram o pão nosso de cada dia. Nas folhas de pré, no quartel, encontrei Comboio Motor (só um), Canivetes (nome muito vulgar), Sabonetes, e muitos outros atestando o bom gosto dos Chefes de Posto e o seu profundo respeito pelas pessoas que iam registar os filhos. É interessante referir que, depois da independência houve um movimento em sentido contrário, que fez com que muitos angolanos brancos etiquetassem os seus rebentos com N’Zinga M’Bandi, Iara, Luege, Tetembue, Luanha, Diege, e outros que tais. Corria o boato que todas as crianças tinham que ter um nome angolano, boato que só se desvanesceu lá para 1977, quando foi esclarecido (tudo isto a nível de “diz-se diz-se”, veículo informativo privilegiado in illo tempore...) que se consideravam angolanos todos os nomes portugueses. Assim sendo, uma criança poderia chamar-se José Stalin mas não Mao Murtalla Mohamed (para grande desgosto dos admiradores destes destacados lideres).

[4] Seculu era a designação dada aos mais velhos. No norte tinha por equivalente o mais divulgado cota.

[5] Posso atestar que o conteúdo dos chouriços e morcelas era porco legítimo. Não posso, contudo, atestar a saúde dos bichos, nem as condições de higiene no abate, preparação, acondicionamento e distribuição dos mesmos...

[6] Só assim é que eu ficava a saber, pois, como é natural, a passagem destas ramonas interurbanas não era publicitada.

[7] Os outros mega processos foram dirigidos contra os mercenários (no rescaldo da guerra que precedeu a independência, envolvendo os três movimentos, o Zaire e a África do Sul) e outro contra os membros da Disa (polícia secreta) supostamente envolvidos numa tentativa de golpe de estado. Este último processo varreu da Disa quase todos os brancos e mulatos, em particular os investigadores que conduziram o processo contra o tráfico de diamantes. Os investigadores estavam, à partida, limitados no seu campo de acção, mas mesmo assim ainda roçaram gente muito próxima do topo da hierarquia do estado e da tropa. Isso ter-lhes-á sido fatal.

[8] Maka é uma palavra usada um pouco por toda a Angola (e em Moçambique também) que significa conflito, confusão, desordem.

[9] Estou a cingir-me ao ambiente colonial daquele tempo. É claro que um casamento entre um estudante preto e uma branca em Coimbra (ou mesmo nos States) podia abanar um pouco a sociedade local, mas o grau académico e/ou a “assimilação” à cultura europeia do noivo tornavam-no admissível. Reporto-me a Agostinho Neto e a Eduardo Mondlane que, nos anos 50, casaram com senhoras brancas.

2 comentários:

  1. Havia a piada que o caputo vinha das berças, desembarcava, ia para traz de um balcão de loja no muceque, pregava uns socos de madeira atraz do balcão, e só saía dos socos para ir dormir e regressava aos socos ao abrir da loja.
    Era o único percurso que conhecia em África.

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  2. Havia a piada, e havia alguns... Havia uns e outros, mas havia o querer, e o saber como obter e ter o discernimento qual o momento de o usar... Havia o desenrrascar Português, o talvez, o tentar e voltar a tentar, até acertar...
    Porque não havia o MEDO,tal como o que estou a ler, e continuo a gostar de o ler. Obrigado, Réjo Marpa.

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