quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

ANGOLA Recordações da Tropa - Cap 9 Nova Lisboa

Pouco depois do regresso do meu pai a Sá da Bandeira (acompanhado do inevitável papagaio cinzento e rabo vermelho, ex libris de Cabinda), fizemos as malas, encaixotámos as bicuatas[1], e rumámos a Nova Lisboa, em cujo regimento o meu pai fora colocado.

Fizemos a viagem numa camioneta de carreira típica das áreas rurais desse tempo. A viatura era um cruzamento entre autocarro e camião, sendo a metade dianteira destinada a passageiros, e a traseira, caixa de carga, destinada à carga e bagagem.

Angola era nesse tempo, tal como continua hoje, servida por uma rede ferroviária de penetração, com três linhas[2] que partiam dos portos de Luanda, Lobito e Moçâmedes e terminavam, respectivamente, em Malange, Teixeira de Sousa, na fronteira do Catanga, e um pouco antes de Serpa Pinto[3].

As comunicações norte-sul, no interior, faziam-se por estrada. A rede de estradas era considerável, mas no tocante a estradas asfaltadas era quase inexistente. As empresas de camionagem tinham uma actividade intensa e eram várias, a EVA[4], a Socotral, a Venâncio Guimarães (de uma das famílias mais ricas de Sá da Bandeira), etc.

Assim, a nossa viagem para Nova Lisboa foi feita por estrada de terra batida, desde madrugada até ao fim da tarde. Passámos por diversas povoações, mas, para além de paisagens espectaculares, não vimos nada de especial: a viagem foi uma pasmaceira, para além de muito incómoda. Não levámos qualquer escolta, nem íamos na companhia de nenhuma outra viatura.

Mesmo depois do início do terrorismo as viagens no centro e sul continuaram a fazer-se na melhor paz possível, pois as áreas de guerra estiveram sempre circunscritas ao norte e, a partir de certa altura, estenderam-se ao leste.

Nova Lisboa (fotos da autoria de MGV) era uma cidade muito maior que Sá da Bandeira, quer em população, quer em área. O núcleo central, constituído pela Baixa e pela Alta, era envolvido por uma série de bairros periféricos, quase todos com nomes de santos. Nós ficámos instalados no Bairro de Santo António, que tinha a vantagem de ficar relativamente perto da zona dos quartéis. A Alta e a Baixa estendiam-se ao longo da linha de caminho de ferro, paralela à qual se alongava a avenida 5 de Outubro, desde a zona das oficinas do CFB[5] até ao largo Norton de Matos.

(Veja mais fotos aqui) A outra ligação era muito mais curta, numa zona com um declive acentuado, e ia do largo do mercado, na baixa, até ao largo dos correios velhos, na alta. Esta rua era a Granja (desconheço se tinha algum daqueles nomes postiços tipo efeméride patriótica ou nome de um qualquer morcão que matou muitos pretos ou enganou muitos brancos) (foto à direita - o morcão era Paiva Couveiro...).

De um dos lados da Granja, à esquerda de quem desce, ficava uma mata, com estufa fria, jardins e um lago, e quase nenhumas construções, para além do palácio do Bispo.

Do outro lado erguiam-se algumas casas, quase todas baixas e antigas, e uma transversal (na realidade um enorme descampado) que conduzia ao Liceu, passando, logo no início, pela Escola Industrial.

Para lá da linha de caminho de ferro ficava o bairro de S. Pedro, com algumas fábricas, entre elas a da Cuca (cerveja), e o bairro do Ferrovia, com as oficinas do CFB, as instalações do Clube que deu o nome ao bairro, de que se destacavam o campo de tiro aos pratos e a piscina. À falta de praia, a piscina era absolutamente vital para o pessoal dar uns mergulhos ao fim de semana.

A piscina do Ferrovia (foto ao lado, tirada da Sanzala Angola) não era a única da cidade, mas era de longe a maior, pelo que o meu pai se fez rapidamente sócio do clube.

Pouco depois da nossa chegada, deu-se um acidente no extremo sul de Angola, no Chitado, com um avião militar, um Nord Atlas, no qual morreu quase toda a cúpula das forças armadas na província, incluindo o comandante em Chefe, General Silva Freire. (Tenho que fazer uma correcção: o desastre ocorreu com um Dakota e não com um Nord Atlas).

Curiosamente, foi dado o seu nome a uma rua de Lisboa, nos Olivais-Norte. A placa toponímica refere que o senhor general morreu em 1961 em Angola ao serviço da Pátria, deixando que o transeunte desprevenido pense que morreu em combate ou, ao menos, numa zona de guerra.

Os ecos do 4 de Fevereiro[6] chegaram-nos mais como um incidente pontual, um acto de banditismo, sem consequências de maior, já que a nossa tropa, secundada (ou ultrapassada...) pelas milícias que rapidamente se formaram, chegou e sobejou para repor a ordem.

Com o 15 de Março, a música foi outra. Tratou-se de um revolta de rara violência, que se generalizou a todo o norte de Angola, tendo algumas cidades chegado a estar cercadas. Carmona, actual Uíge, que o diga!

A estratégia usada parece ter sido a de aterrorizar a população branca[7], por meio de morticínios perpetrados por hordas ululantes e drogadas que matavam com requintes de crueldade, esquartejando e esventrando as vítimas que lhes apareciam à frente. Assim morreram brancos, homens, mulheres e crianças, e pretos bailundos, infelizes contratados, trazidos do planalto central por tuta e meia, para serem vitimados pelo ódio tribal que a UPA começou desde cedo a destilar de forma inequívoca. (Veja este pequeno filme)

Mais tarde, dir-se-ia da FNLA, sucessora da UPA, que era como um conhecido detergente: o OMO lava mais branco, e a FNLA limpa mais brancos.

Estas matanças tiveram um impacto muito forte em toda a província, circulando fotografias macabras do que os soldados encontraram, à medida que as colunas que partiam de Luanda iam chegando aos palcos das tragédias de Março de 1961.

Nas áreas não afectadas começou-se com rusgas e inquirições, com algumas prisões de suspeitos. Assim foi preso o faxina de um nosso vizinho em Sá da Bandeira, em cujos pertences foram encontradas estrelas de general e propaganda do MPLA.

A população branca formou milícias de auto defesa, e todo o mundo passou a receber instrução no manejo de arma. Passámos a ter em casa uma espingarda Mauser, com vários pentes de munições, para o que desse e viesse.

A nossa casa ficava junto a uma mata enorme[8], pertencente ao Instituto de Investigação Agro-Pecuária do Huambo. Uma noite, estava o meu pai de serviço no quartel, começámos a ouvir grande gritaria vinda da mata acompanhada de rufar de tambores, primeiro muito ao longe, depois o ruído foi crescendo como se a sua orígem se estivesse aproximando. Pensámos, claro, que os terroristas nos vinham atacar[9]. A minha mãe não se perturbou, agarrou na Mauser, pôs um avental em cujo bolso da frente meteu pentes de munição, carregou a arma, e ficámos à espera, de luzes apagadas.

Como a gritaria parecia já muito próxima, nem sequer cuidámos de ir às casas vizinhas, nalgumas das quais também viviam militares, para concertar a acção defensiva. Ficámos simplesmente a postos para o que desse e viesse.

Consta que terei perguntado à minha mãe se íamos morrer. Não me lembro de ter propriamente tendência para dramatizar, mas nesses tempos era comum ouvirem-se histórias de famílias dizimadas no norte, ou encontrarmos colegas de Liceu cujos pais tinham fazendas no Uíge ou nos Dembos, e lá tinham sido mortos e esquartejados.

Afinal a barulheira era uma batucada dos trabalhadores da Pecuária e a ilusão que tivemos de aproximação ter-se-á devido aos caprichos do vento.

Com o tempo, a sensação de catástrofe iminente em que se vivia após os massacres de 1961 foi-se atenuando, e a vida no centro e sul prosseguiu na velha paz de sempre.

Havia agora uma política nova para com o preto, a par de um esforço para desenvolver a economia da província. A acção psico social (ou Apsic) consistia, resumidamente, em tentar conquistar a população para a nossa causa, mostrando-lhe que os portugueses estavam a combater os terroristas que só queriam matar o branco e mandar no preto. O interesse da população seria denunciar os terroristas e trabalhar ao lado dos brancos.

A desumanidade dos contratos de trabalho foi aligeirada, a brutalidade indiscriminada sobre os pretos tornou-se menos ostensiva. Em contrapartida, o terrorismo proporcionou às “forças da ordem” uma arma que fazia calar qualquer Apsic e permitia todas as arbitrariedades. Se um preto era terrorista (ou rotulado como tal), o seu destino estava traçado e o tratamento era agora mais radical que as velhas palmatoadas...

Quando, muitos anos depois, estive em Quibaxe, na tropa, os colonos da região chamaram-me a atenção para o capim que crescia viçoso numa zona junto ao forte (foto actual, ao lado) onde a população branca se refugiou em 1961, adubado por cerca de 400 turras[10] enterrados numa vala, à força de bulldozer.

Uns menos mortos que outros, uns mais turras que outros.

. . . . . .

NOTAS:

[1] palavra Mumuila de uso tão abrangente como a nossa coisas; a palavra mais divulgada, com o mesmo significado é imbambas.

[2] Não incluo as pequenas linhas do Cuio ao Dombe Grande e de Porto Amboim à Gabela, linhas de bitola estreita (60 cm) e servindo áreas muito restritas.

[3] Depois da independência, Teixeira de Sousa deu em Luau (nome do rio que lhe passa próximo) e Serpa Pinto em Menongue.

[4] Empresa de Viação de Angola. Desconheço se tinha alguma relação com a homónima do Algarve.

[5] Caminho de Ferro de Benguela, empresa mais rica e mais influente na faixa servida pelo comboio entre o Lobito e Teixeira de Sousa, na fronteira leste.

[6] Ataque à cadeia em Luanda, pelo MPLA, que desencadeou uma onda de violência branca nos muceques.

[7] por este motivo, considero perfeitamente razoável utilizar a expressão terrorismo para o início da luta armada contra Portugal. Não duvido de que essa luta se destinava a libertar o país dos estrangeiros que lá se instalaram e que medravam à custa da população autóctone. Só que essa luta começou com actos de terrorismo nu e cru, sobre a população civil.

[8] Ocupava uma área de cerca de 100.000 hectares, dispondo de vacarias, viveiros de plantas, laboratórios, constituindo o núcleo que anos mais tarde deu origem à Escola Superior de Medicina Veterinária.

[9] Segundo as histórias que se contavam sobre os ataques no norte, os terroristas investiam ao som de tambores gritando “UPA Lumumba!”. Não temiam as balas do branco, pois os feiticeiros ter-lhes-iam dado uma beberagem que os tornava imunes a elas. Daí a frase “bala de branco não mata preto”. Assim, chegavam a encaixar várias descargas, avançando sempre, até caírem junto às trincheiras. O efeito psicológico sobre os defensores deve ter sido deveras devastador.

[10] Versão simplificada de terrorista. Nós, os tugas, eles, os turras.

8 comentários:

  1. Eu fui 1º cabo em Angola,fui num P.A.D.3069,e ficamos instalados em Nova Lsboa,dependiamos directamente do Agrupamento do Serviço de Material de Angola sitiado no Grafanil, o Nosso Comandante era ,digo era porque já morreu, o Davide Irineu Velosa ponte Lira, estivemos em Nova Lisboa desde Dezembro de 1971 até Março de 1974, se alguém vir este blog e quiser contactar comigo,já sabe, o meu email vai a seguir casaseleiro@sapo.pt obrigado camarada por me deichar utilizar o tsu blog para esta mensagem,
    um abraço Rui seleiro

    ResponderEliminar
  2. um agradecimento ,muito sentido ao vosso blogue, devido a um comentário que escrevi, no vossso blogue, já deu frutos, dois amigos que já não nos viamos há mais de 30 anos, encontrámo-nos através da internet, e este ano já vão estar presente no almoço da nossa unidade, P.A.D.3069
    Nova Lisboa, Angola, Dezembro de 1971 a Março de 1974, um abraço a todos Rui Seleiro

    ResponderEliminar
  3. Um Abraço Para Todos Os Colegas Da Comp Caç 1493 Batt 1875 que estiveram comigo em angola desde janeiro 1966 a1968 na serra do Inga e no toto sou o pinto Magro Organizador De Todos anos do almoço de convivio procuro furriel pessoa da figueira da Foz veio evaquado aos 4 meses por acidente -Cabo Cruz ficou No Hospital doente -império Alves Ferreira -Furriel Lubao Furriel Pereira Imigrante Sol Ribeiro imigrante França Um Abraço contacto 224114089

    ResponderEliminar
  4. Nova Lisboa,Gabela,Novo Redondo,Lobito,Benguela,S. da Bandeira,Moçâmedes, Porto Alexandre,pelo menos estas, viveram sempre na paz do "Senhor"... Saudades no tempo... Réjo Marpa

    ResponderEliminar
  5. a todos os interessados vai realizar em Maio de 2016 um almoço convivio para todos os que tiveram no ASMA quem estiver interessado contacto 967853010

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Caros Amigos ex-combatentes prestei serviço (como condutor)no ASMA de 1964 a 1967,e acabo de receber a informação que o Encontro-Convívio do ASMA se vai realizar a 21 de Maio.
      Um forte abraço a todos.

      Eliminar
    2. vocês funcionários do ASMA não tem pagina de facebook?

      Eliminar

Comente como se estivesse num albergue espanhol: entra tudo e ninguém é excluído.