quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

ANGOLA Recordações da Tropa - Cap 17 Catete

O Batalhão sediado em Catete tinha como missão guardar o acesso a Luanda por leste, a chamada estrada de Catete, que conduzia ao Zenza do Itombe, ao Dondo, N’Dalatando e daí para Malange. As companhias estavam distribuidas por povoações ao longo da estrada, na Barraca e Calomboloca, ficando a terceira e a CCS na sede do Batalhão. (Na foto ao lado, o Filipe na Rainha da Estrada)

É claro que com o fim da guerra (da nossa guerra, entenda-se) a nossa missão era qualquer coisa tão vaga como aguentar até regressarmos a Portugal e entretanto “evitar que a pretalhada se pegue à porrada”, como muito bem me explicou um alto graduado do MFA.

Efectivamente a fase das flores e dos comícios pouco durou, as patrulhas conjuntas em Luanda para evitar confrontos nos muceques não tinham grande sucesso e, acima de tudo, era claro que todos os movimentos estavam a armar-se apressadamente não deixando dúvidas de que a supremacia seria resolvida pela lei do mais forte e nunca por eleições.

Em Catete havia um quartel do MPLA (largamente maioritário na zona, ou não fosse o Agostinho Neto daquela região) que devia ser muito importante porque um dos comissários principais, o Bakaloff[1], que eu conhecia de Quibaxe, aparecia por lá muito. Encontrei-o várias vezes, com ar de não estar apenas de visita, mas como se “lá morasse”.

A FNLA assentou arraiais quase em cima da estrada (o quartel do MPLA ficava um pouco mais longe, para lá do nosso) e, como era seu apanágio, tinha uma tropa bem fardada e armada, falando as suas linguas peculiares, o francês e o lingala, e não pescando peva de português.

Os atritos com a população simpatizante do MPLA (portadora de crachás, bandeiras, T-shirts, etc) eram frequentes e por vezes aconteciam com militares daquele movimento que passavam perto do quartel da FNLA ou à mão de semear de uma sua patrulha.

Nesses casos, quando culminavam com a prisão de um elemento do partido oposto (mais tarde o termo inimigo passaria a ser mais apropriado), lá tinhamos nós (quase sempre eu, dadas as funções político militares informais de que estava investido…) que ir falar com ambas as partes e resolver a questão de uma forma que permitisse a ambas salvar a face.

Escuso de dizer que treinei o meu francês como nunca, pois com a FNLA não tinha outro jeito. A fluência no francês[2] era, aliás, a minha “arma” nas negociações com a tropa da FNLA. (Na foto em cima, o Autor sempre em estreita ligação com as massas populares, em particular as mais jovens).

Com o MPLA tinha facilidade de diálogo, porque conhecia uma boa parte dos chefes da região (uns de Luanda, outros de Quibaxe) e alguns militantes. Com a FNLA não tinha nenhum ponto de contacto e eles não tinham um relacionamento fácil com brancos. Assim sendo, ficavam muito bem impressionados quando lhes aparecia um branco a falar fluentemente a língua deles, não num tom coloquial mas num linguajar pontuado de calão e de vícios de linguagem, intencionalmente “adquiridos”.

Uma tarde de sábado ou domingo, cheguei de Luanda[3] e encontrei a messe de oficiais em polvorosa: a FNLA tinha prendido um militante do MPLA que tinha uma pistola, gerou-se a confusão, o MPLA queria ir lá libertar o preso e a FNLA, pelo sim, pelo não, montou um dispositivo de segurança avançado quase à porta do quartel do MPLA.

A situação estava explosiva, de modo que nem tive tempo para me fardar. Passei da mota para um jipe, e avançámos pelo meio do capim para a zona onde estaria a tropa da FNLA. Eu ia de pé ao lado do condutor, agitando um braço (o outro agarrava o pára brisas, se não caía) gritando parvamente qualquer coisa como “Atenção, sou um oficial do MFA, não atirem”.

Para completar o quadro, estava a escurecer e eu estava com um lenço esvoaçante ao pescoço, tal como chegara de Luanda. De repente, levantou-se do meio do capim uma horda que cercou o jipe e me cercou, de armas apontadas, depois de eu ter descido do dito.

Ainda me gritaram aos ouvidos e me encostaram um cano de arma à barriga, mas aí o verbo (em francês) operou maravilhas e pouco depois o tipo do MPLA estava solto (sem arma). Ficou combinado que no dia seguinte iríamos todos a Luanda, ao Quartel General, (eu e representantes da FNLA e do MPLA) para fazermos um relatório à Comissão Conjunta, onde os três movimentos e o exército português estavam representados, para resolverem questões como a que descrevi.

Nunca participei em nenhuma das patrulhas conjuntas[4] que percorriam a cidade e parte dos muceques, mas essa era uma das principais missões que as NT tinham nesse tempo. Um belo dia, uma das patrulhas conjuntas prendeu um perigoso agitador (à direita, já sem o jimmy) que procurava mobilizar as massas no muceque Prenda, contra as armadilhas do neocolonialismo (se não foi este o objectivo da agit prop, terá sido outro equivalente...)

Chamado à casa de reclusão, encontrei o meu amigo Zé Carlos Tiago que tinha ido para Angola em alta missão de solidariedade para com as massas populares, a título (tanto quanto me apercebi) estritamente individual. Abancou por uns tempos em casa dos meus futuros (e actuais…) sogros como eu próprio fazia quando estava em Luanda, e mergulhou na revolução.

Só que as coisas em Angola eram um bocado a sério (ou a guerra não levasse já catorze anos de tiros e mortos de parte a parte) e não se percebia bem que um branco desconhecido, não integrado em nenhum dos movimentos encartados, com um jimmy[5] enorme, sebento e com ar meio amalucado andasse pelo muceque a dar uma de salvador do povão.
O Zé Carlos era o Presidente do PIM - Partido Internacionalista Monárquico (não confundir com o PIM, com uma bomba sobre o I, do renegado João Paulo, figura mítica que nunca cheguei a conhecer).

Convidou-me para o partido, e estive tentado a aceitar, já que as condições eram aliciantes: como único militante teria a primazia para um lugar no governo, caso o PIM ganhasse as eleições (ou conquistasse o poder por outros meios). O partido dissolveu-se, entretanto, pelo que não cheguei a aderir.

Voltando ao incidente, parece que foram os próprios putos a quem se dirigia a arenga que chamaram as Forças Integradas (creio que era este o nome das tais patrulhas conjuntas). O Zé Carlos ficou incomunicável na casa de reclusão (mas consegui vê-lo e falar-lhe ao contrário do que sucedera quando tentei visitar o meu colega Guimarães-qualquer-coisa do MRPP).

Finalmente foi solto (saíu com uma monumental carecada), eu registei convenientemente a ocasião (ou voltámos lá para a fotografia, em cima e à direita, como fazem os profissionais, o que vem a dar no mesmo). Uns tempos depois, ei-lo de regresso à mãe pátria onde a situação estava a tornar-se cada vez mais interessante para um cientista da revolução.

Por volta de meados de Abril de 1975 o meu Batalhão regressou a Portugal. Acontece que eu me sentia muito bem em Luanda, a situação estava a ficar muito movimentada, com partidos e movimentos cívicos para todos os gostos e feitios, a Universidade fervilhava de reuniões e comícios, nem sempre com o controlo do MPLA.

Como seria de esperar, os estudantes eram de esquerda, pois de esquerda eram os ideais de descolonização, independência, recusa de um qualquer neocolonialismo.

Não estaria longe da verdade dizer que o MPLA, com ideias que faziam sentido, com pessoas (militantes e simpatizantes) capazes de alinhar duas frases com forma e conteudo, a falar ou a escrever, com hábitos de vida de cidade (culturalmente próximos dos portugueses), era, de longe, o partido que mais expressão tinha nas cidades.

É interessante referir que nunca consegui encontar um livro, uma pequena brochura que fosse, um caderno … qualquer coisa com escritos do Savimbi ou de outro dirigente da Unita. Da FNLA também não. Não me pareceu interessante comprar o livro da Dra Fátima Roque, publicado depois de deixar a Unita[6]. Não a vejo como dirigente do Galo Negro, vejo-a mais como uma pessoa que lhe cedeu “sa croupe populaire” numa altura em que a Unita precisava desesperadamente de mostrar gente credível (ia a votos e não a tiros…). A senhora ficou rapidamente deslocada quando as eleições foram perdidas e o Muata não se conformou com a derrota.

Estou, contudo, interessado em ler o livro que saíu há pouco escrito por um antigo ministro de um país da África ocidental, baseado em entrevistas dadas por Savimbi.

Voltando a Luanda, entre a estudantada havia gente que não ia em revisionismos e que se opunha, pela esquerda, à hegemonia do MPLA. Entre os movimentos mais activos estavam os CACs, Comités Amilcar Cabral, e de um incipiente Partido Comunista Angolano.

Depois da independência alguns dos activistas passaram largo tempo[7] na prisão, após o que foram soltos e se integraram facilmente (pelo menos a dúzia que eu conheci) na sociedade, sem chatices de ordem profissional, se bem que se mantivessem à margem do MPLA.

Depois do meu Batalhão regressar a Portugal, eu e o Filipe (que além de ser furriel no meu pelotão era escrivão dos autos[8], e um compincha) resolvemos ficar mais uns tempos em Luanda. Aleguei que os Autos de Corpo Delito que ainda não tinham sido julgados mereciam o nosso empenho, pelo que continuaríamos a fazer diligências para que não ficassem parados (e os arguidos, presos, muito tempo à espera do julgamento). O nosso Comandante (do Batalhão) concordou de pronto, e ficámos em Angola.

A intenção era louvável mas não era (claro!) inocente: tanto eu como o Filipe movimentávamo-nos muito bem na noite luandense (sem falar nas praias e cervejarias, durante o dia), de modo que a nossa permanência em Luanda juntava o útil ao agradável.

Até que um belo dia, durava esta situação uns belos dois meses, sou chamado de urgência à chefia do Serviço de Justiça. Um major tarimbeiro queria saber o que raio faziam em Luanda um alferes e um furriel cujo Batalhão já regressara a Portugal e que, ainda por cima, não estavam enquadrados em qualquer unidade militar (estávamos, pois, por nossa conta e risco e quase sem ter que dar satisfações a ninguém...). Bem lhe cantei o fado dos soldados presos e dos Autos pendentes, que de nada serviu.

Menos de uma semana depois estávamos, sem apelo nem agravo, no avião de regresso a Lisboa.
. . . . .
NOTAS:

[1] envolveu-se até ao pescoço no golpe sangrento do Nito Alves, tendo, por isso, perdido aquele peça da sua anatomia.

[2] o conhecimento de muitas canções de Georges Brassens, o meu cantor preferido desses tempos, ajudou muito neste capítulo; se quiser, recorde-o aqui.

[3] com Catete a dois passos de Luanda, estava todos os dias a chegar ou partir para a capital.

[4] com militares dos três movimentos e das NT

[5] cabeleira à Jimmy Hendrix

[6] A dita senhora seguiu a regra de ouro dos dissidentes da Unita: disside só quando estiveres bem longe do Muata e com a tua família em lugar seguro. É que ele aprecia pouco dissidências, discussões, ou simples divergências…

[7] conheci alguns que estiveram quase três anos dentro…

[8] era um escrivão sui generis: como eu escrevia melhor à máquina (ou ele não apreciava a arte…) era eu que escrevia tudo e assinávamos os dois, eu como oficial averiguante e ele como escrivão…

4 comentários:

  1. Tanto o MPLA em Luanda, bem como o PAIGC, em Bissau, quase conseguiam recriar uma ideia que se ouvia muitas vezes durante muitos anos: "aqui vão surgir os novos Brasis".
    Sempre pensei que seriam os mestiços e brancos a lançar essa boca. Os tais que "conseguiam alinhar duas frases".
    Mas parece complicada a concretização, pois que muitos veem-se mais em Lisboa que em Luanda ou em Bissau.

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  2. Aconcelho vivamente a leitura do livro "Ficheiros Secretos da Descolonização de Angola" da jornalista Leonor Figueiredo

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