sábado, 3 de janeiro de 2009

ANGOLA Recordações da Tropa - Cap 10 O Liceu Nacional de Nova Lisboa

As minhas primeiras impressões de Nova Lisboa ficaram fortemente marcadas pelo terrorismo, assunto de conversas e noticiários durante praticamente todo o ano de 61, e parte de 62. Tive alguns professores provenientes do norte, de Carmona (actual Uíge), cujo Liceu fechou durante uns tempos, por o grosso da população branca, à excepção dos homens, se ter refugiado em Luanda, na Metrópole, ou nas regiões não afectadas do centro e sul de Angola.

Um desses professores ficou famoso pelo mau vinho e mão leve. Logo num dos primeiros dias depois da sua chegada ao Liceu terá dado um monumental arraial de porrada num dos poucos pretos que o frequentavam, por um motivo qualquer (não foi na minha turma, de modo que desconheço os pormenores). O homem perdeu completamente o controlo e, enquanto batia no aluno, chamava-lhe preto, terrorista, etc. A partir daí, passámos a tratá-lo com mil cuidados, em particular quando chegava à aula com os olhos injectados e turvos.

Olhava-nos com ar sonolento, percorria a caderneta até escolher um aluno. A potencial vítima era então a convidada a abrir o livro na página tal e, com um arrastado “leia alto e debagar”, começava a sua actuação. Não me consta que o Carneiro Leão, era essa a sua graça, tenha voltado a bater em alguém. A fama de bera chegava para nos manter em respeito.

Para além do Carneiro Leão, este Liceu tinha a maior colecção de tipos curiosos que encontrei ao longo da minha vida escolar. O máximo era o Barbeiro, Vieira de seu nome. Começou como professor de substituição, que lhe valeu uma primeira alcunha de Tapa Furos. Passou depois a professor permanente da disciplina de Físico Químicas. A alcunha de Barbeiro era-lhe devida pela bata branca que usou desde o primeiro dia.

Não frequentava a sala dos professores, passando os intervalos nas varandas (o liceu tinha em cada piso amplas varandas, com escadarias nos topos, para onde davam as portas das salas) a olhar o infinito, agarrado à pasta de couro que nunca largava.

Com o tempo, as costas das batas passaram a ter marcas permanentes de tinta projectada pela malta à passagem do Barbeiro[1]. Era uma pessoa extremamente solene e séria, falava numa linguagem rica em palavras caras e citações avulsas. Raramente ria e não gostava muito que o fizéssemos nós. Não se zangava, mas fulmináva-nos com “o tolo não sabe de que se ri!”.

Quando entrava na sala e o cumprimentávamos com o habitual “bom dia, sô tôr”, olhava-nos de revês enquanto caminhava para a secretária e resmungava um “palavras inúteis!”.

Se fazíamos barulho (o que não era raro), interrompia a aula dizendo-nos qualquer coisa como “ouvi um murmúrio isolado; quem murmurou?”. Como ninguém se acusava (claro!) nomeava vigilantes, a quem pedia para indicarem a direcção donde o murmúrio provinha. Só da primeira vez, por estarmos ainda desprevenidos, é que as três direcções se intersectaram num ponto. Daí em diante as direcções indicadas pelos vigilantes eram totalmente desconexas, o que o deixava perplexo. Acabou por abandonar de vez este método.

A tabela de classificações que usava era muito diversificada e expressiva. Os suficientes podiam ser mínimo, médio e quase médio, afectados de vários pontos de interrogação (tive, por exemplo, um suficiente mínimo com cinco interrogações). O medíocre médio era uma classificação razoável: dava 10 no fim do período.

Não me lembro de ter tido (ou de alguém ter tido) mais que suficiente médio, que era uma boa classificação: dava 13 no fim do período. Treze era, aliás, o seu número preferido. Com o tempo, apercebemo-nos de que os problemas davam sempre 13, de modo que, quando não sabíamos resolvê-los, podíamos sempre misturar os dados até dar treze. Este expediente provocava grande profusão de rabiscos, interrogações e comentários escritos à margem do ponto, mas garantia um medíocre médio. Dava dez no fim do período, do mal, o menos!

As notas das chamadas eram uma coisa perfeitamente louca. Basta referir uma chamada no seguimento da qual ficou registado no meu caderno um “chamada algo regular, com passos algo aproveitáveis de um passado próximo”. Não dá para acreditar. E de Barbeiro, estamos conversados!

A professora de desenho, mulher do reitor, era uma brasa já a entrar na meia idade, ainda com os seus abundantes atributos perfeitamente em forma[2]. Como alunos respeitadores, esperávamos a chegada do reitor debruçados nas varandas, e cumprimentávamo-lo quando saía do seu Taunus 17 M que arrumava nas traseiras do edifício. As varandas ficavam quase à vertical do pára brisas, o que nos proporcionava o espectáculo da Piedade[3] a sair do carro, qual Vénus a sair do banho.

(Na foto a seguir, a Piedade enquadrada pelas meninias da turma da minha irmã, a 4ª a contar da direita, de pé).

O espectáculo era reposto em várias sessões na sala de aulas, quando a secretária era rodeada por artistas interessados em esmiuçar determinados pormenores de um desenho. Quando o debate estava bem aceso, e a Piedade empolgada a discorrer sobre a temperatura da escala cromática, um lápis desgarrado caía ao chão, quase sempre à frente da secretária. Naturalmente, alguém tinha que se baixar para o apanhar (às vezes, o raio do lápis demorava um tempão a achar...). Um belo dia, o Marinheiro deixou cair uma borracha, que saltou mesmo para os pés da professora. No preciso momento em que ele se preparava para lhe deitar a mão (à borracha, não à professora), ela descruzou as pernas. Foi terrível!

Ela não só lhe deu um pontapé, como ainda por cima o acusou de lhe estar a espreitar para as pernas (incrível!) e não acreditou que ele só estava a apanhar a borracha!

Continuando com bizarrias, um dia o Anacleto Ferramenta Isaías, um dos poucos colegas pretos (era o melhor aluno do 3º ano)[4] pirou de vez. Faltou às aulas durante uns dias e voltou com uma história complicada um tanto lafontainiana. Fora visitar um tio que vivia no mato, perdeu-se, fartou-se de andar a pé até que chegou a um sítio onde havia uvas. Ele estava cheio de fome, mas as uvas estavam verdes, verdes que nem os cães as podiam tragar. Não me lembro do resto da história, mas o mote era este. Creio que acabou por deixar o Liceu, e nunca mais soube dele. (*)

No ano em que cheguei a Nova Lisboa, o Liceu acabara de ser inaugurado, compreendendo apenas o corpo principal, de dois andares, cuja frente seria a fachada principal do edifício. O resto continuava em construção, e viria a ser um conjunto imponente, com um segundo corpo paralelo ao principal, interligados por três blocos perpendiculares àqueles, um central e dois laterais. Destes últimos partiam dois ginásios, paralelos ao corpo principal. Quando regressámos à Metrópole, estava eu no início do 4º ano, as obras estavam quase terminadas.

Nesse tempo, a rua de acesso ao Liceu estava ainda por asfaltar, de modo que o percurso desde a Granja era um monumental lamaçal no tempo das chuvas. Melhor sorte tinha o pessoal que frequentava a escola Industrial e Comercial (foto acima) que ficava mesmo junto à Granja, quase em frente do Palácio do Bispo. Se bem que o asfalto não chegasse à escola, o trajecto por asfaltar não teria cem metros.

A rua do liceu conduzia ao Benfica, um complexo desportivo, com uma pequena piscina para onde a malta ia dar uns mergulhos quando algum professor faltava. Entre o largo do liceu e o Benfica havia uma mata onde apareceu uma vez um tipo morto a tiro, tendo ficado por esclarecer se se tratara de crime passional (a mata era ponto escolhido para encontros discretos), se teria alguma coisa que ver com actividades terroristas.

O largo do Liceu ficava numa encosta suave que começava no Hospital (de cuja morgue já falei mais atrás) e ia até um riozito que nascia algures atrás do palácio do Bispo, entre a Granja e a 5 de Outubro, e seguia em direcção à mata do Benfica. Se bem que o riacho fosse, nesse trecho, um simples fio de água, alargava-se em lagoas onde a malta nadava, e em cujas margens fazíamos altas guerras de goiabas verdes. O resultado não ia além de galos resultantes do impacto das ditas que, se bem que pequenas, são bastante duras e compactas quando verdes.

Foi no regresso de uma dessas expedições ao rio que alguém nos trouxe a notícia de que o Carneiro Leão se passara com o tal aluno preto. Lembro-me que ficámos a congeminar revoltas contra a patibular personagem, até que tocou a campainha para a próxima aula, e a revolta ficou por aí mesmo.
. . . . . .
NOTAS:

[1] A esferográfica não fizera ainda a sua aparição.

[2] Georges Brassens, no Bistro, cantava uma balzaquiana quejanda, “avec ses appas bien en place”. Voilá!
[3] assim se chamava a matrona

[4] a minha proverbial modéstia impede-me de revelar quem era o segundo, logo, logo a seguir ao Anacleto.

(*) Graças à Internet, soube agorinha mesmo, numa pesquisa "por descargo de cosciência", que o Anacleto era em 1999 Presidente da Câmara, ou Comissário Municipal, do Bailundo; vejam a notícia de 16/7/99 no link das Notícias da Unita; porreiro, pá! vou tentar localizá-lo e entrar em contacto com ele)

7 comentários:

  1. ora vê se te interessa isto e logo te envio o que estou escrevendo rss

    ResponderEliminar
  2. Tks pelo link que mandaste; o blog é uma delícia. Recomendo ... a quem tem alguma afinidade com Angola.
    A música de fundo é envolvente e modela o ambiente. Muito fixe!

    ResponderEliminar
  3. Nãom sei quem era o presidente da câmara do Bailundo. Só lá estive umas horas, como refiro no texto que leu.
    CN

    ResponderEliminar
  4. Mário Jorge Pires Vaz ( o Marreta ). Fui tambem um dos que inaugurou o novo Liceu mais a minha irmã.Iamos de Carreira ( camioneta Militar) desde o Bairro Militar.Era colega do Fausto Cantor, minha irma Céu era colega da esposa do Ribeiro Cristovão (locutor).Do meu grupo faziam parte o Caçada, o Matarroano,o Viegas, o Tuna, Balsinhas, o Barata e muitos outros que Sujaram a Bata do Professor(o Barbeiro) e admiravamos as pernas da professora de Desenho, Francês e outras.Gozavamos com o Barriga de Jinguba ( Padre de Moral)e apreciavamos o Dom Guan Padre Queixadinhas.Espero noticias da Malta. Larga o Osso que não é teu é da Malta do Liceu.mariopiresvaz@hotmail.com

    ResponderEliminar
  5. Histórias de quando uma simples alcunha,dava uma sempre uma bela hitória...
    Bem haja...Réjo Marpa

    ResponderEliminar
  6. Quem não conheceu esses carneiro e leão mal educado e bruto!! Era mesmo um anormal, sempre alcoolizado!!

    ResponderEliminar

Comente como se estivesse num albergue espanhol: entra tudo e ninguém é excluído.