sábado, 17 de janeiro de 2009

ANGOLA Recordações da Tropa - Cap 15 O Pós 25 de Abril


Um belo dia, o Helder Gaspar, funcionário dos correios, cujas instalações ficavam ao lado do quartel, veio informar-nos, todo excitado, que se tinha passado qualquer coisa em Portugal, não se sabia ainda ao certo o quê, mas parecia um golpe de Estado. Especulámos imenso sobre se seria do Spinola (eu tinha recebido o “Portugal e o Futuro” poucos dias depois de ter saído em Lisboa), se teria sido dos Ultras, receosos estes últimos com os progressos do reviralho e a inoperância de Marcelo Caetano.

Quando a Junta de Salvação foi anunciada, pareceu claro que o Spinola estaria por detrás do golpe, mas afinal não foi bem assim. Em Angola, tudo se manteve na mesma por uns tempos (até o Santos e Castro, Governador Geral e antigo Presidente da Câmara Municipal de Lisboa se manteve em funções por uns dias) e, com a nomeação de Silvino Silvério Marques para Governador Geral, cargo que já desempenhara nos anos 60, ficou claríssimo que a conversa da autodeterminação e da descolonização não era para aplicar a Angola.

A ideia de Spinola de que a descolonização em Angola era um assunto seu terá atrasado a definição da situação no território, parecendo que nada se teria passado na Metrópole que afectasse Angola.

Isso mesmo disse-o eu numa carta publicada no jornal A Província de Angola (tive a lata de assinar com “Alferes Miliciano” antes do nome), o que me valeu ser recambiado para Quibaxe em dois tempos. (O Autor, na foto ao lado, em que se nota a preocupação com a imagem, na personalização do uniforme)

Estava então no Hospital Militar em Luanda com um problema neurológico complicado que consistia em descair para a esquerda[1] quando fechava os olhos e caminhava ao longo de uma linha recta. Por isso, estava internado na neurologia, donde me era muito fácil sair ao entardecer e voltar ao Hospital às tantas da noite. Era uma situação óptima para acompanhar (e participar, na medida do possível) o ambiente fervilhante que se seguiu ao 25 de Abril na sociedade luandense e, em particular, na Universidade.

O ambiente no Batalhão começou a degradar-se depois do 25 de Abril, com problemas constantes com a tropa de recompletamento local (pretos, como referi atrás) cada vez mais inquietos com a sua situação e ansiosos por irem para casa.

Os brancos não estavam menos desejosos de regressarem à santa terrinha e não percebiam muito bem a discrepância cada vez mais palpável entre o que liam no Expresso (para só citar o jornal de Portugal que maior audiência tinha entre nós) e o facto de continuarmos “no terreno”, tecnicamente em guerra, a fazer não se sabia bem o quê.

Entretanto fez-se o cessar fogo com os Movimentos de Libertação e, quase de imediato, começaram os comícios. O MPLA, como era de esperar (do que atrás ficou dito) sugiu com grande implantação na região (e em toda a Angola, em especial nas cidades), mas a conversa esquerdista do Nito Alves (figura de maior destaque na 1ª Região Político Militar; não era nem o Comandante, nem o Comisário Político, mas era, de longe, o que melhor falava...) inquietou desde logo os comerciantes e fazendeiros.

Nesses tempos a posição dominante no MPLA (e entre a malta de esquerda em Portugal…) era de que os comerciantes eram uma espécie de ladrões (não por roubarem propriamente, mas por comprarem por x e venderem por y com y>x) e os fazendeiros não o eram menos porque exploravam o campesinato e, ao que parece, também uns tantos proletas que por lá andariam metidos[2].

É claro que perante estas posições primárias, os brancos abraçaram a Unita e a FNLA que fizeram a sua aparição pouco depois do cessar fogo. A FNLA chegou em camiões com o pessoal fardado, com vistosos capacetes, a falar francês e lingala. Instalou-se numa casa-quartel e passou a vender a sua banha da cobra em reuniões pouco frequentadas pela população.

O Administrador passou a apresentar-se como Comissário Político da FNLA, dando-se uns ares de importância que só visto. Encontrei-o um ano depois em Lisboa, um retornado como os outros. Se bem que detestasse o personagem, fez-me pena pelo abismo que existia entre o retornado de olhar perdido e o ar arrogante e impante do administrador-comissário-político de outros tempos, Homem Grande de uma vilória perdida no cu do mundo.

A UNITA chegou discretamente, instalou-se também numa casa-quartel donde os seus militares saíam de madrugada, em tronco nú, fazendo exercícios ao longo da rua principal da vilória, com grande cagarim de ordens gritadas e respostas em côro.

Os comícios da UNITA eram interessantes e com muita gente, graças ao Engº António N’Dembo, um dirigente filho da região, que falava tão bem como o Nito, mas numa linguagem muito mais livre de chavões políticos, muito mais terra a terra.

A minha coroa de glória no tempo que estive em Quibaxe foi conseguir um comício conjunto realizado no Piri em que falou o Nito (na foto ao lado, de gorro branco, a arengar às massas) e o Engº António N’Dembo (mais à esquerda na foto, a olhar para baixo).

A coisa começou como um comício da UNITA ao qual o meu pelotão montou segurança a fim de evitar confrontos. Estes eram previsíveis pois a sede do MPLA na região era a sanzala do Gulumane, a dois passos do Piri, e o comício podia ser considerado como uma provocação (termo mítico para a malta de esquerda e que exige uma tomada de posição firme, principalmente por quem diz não responder a provocações).

Pouco depois do início do comício, fomos cercados em silêncio por tropa do MPLA, de arma em riste (cano paralelo ao chão, apontado para nós). Não fizeram mais nada, limitaram-se a ficar com as armas apontadas, prontas para o que desse e viesse.

A minha malta começou a dar sinais de inquietação e nervosismo (“oh meu alferes, que merda é esta?!” dizia o Bairro Alto olhando de esguelha as Kalash apontadas às nossas costas), e o clima ficou de repente pouco menos que eléctrico. O meu pelotão era constituído por malta porreira (no sentido mais lato do termo), mas havia alguns mais instáveis que convinha não sujeitar por muito tempo àquela situação[3]. Havia, pois, que actuar depressa.

Felizmente, à frente da tropa do MPLA estava o próprio Comandante da Região, o Comandante de Coluna Kiluanji, que eu conhecia de várias reuniões em que tinhamos participado[4].
Falámos sobre a delicadeza da situação, ele mandou que os guerrilheiros que comandava segurassem as armas de maneira menos agressiva (cano apontado para cima). Quando o Nito chegou, sugeri que, como ambos os movimentos queriam esclarecer a população (pelo menos era o que diziam nas reuniões connosco e nos comunicados que publicavam), o ideal seria ambos os lideres falarem, em vez de se confrontarem.

O Nito, certo da sua eloquência e de estar “em casa”, acedeu de pronto, de modo que falei com o Engº N’Dembo (não o conhecia, nem voltei a falar com ele) que tambem aceitou a sugestão.

E assim, acabámos por ter uma confraternização entre todos (a tropa do MPLA e a nossa foram discretamente colocadas na periferia do recinto), para além dos lideres outros oradores disseram de sua justiça, eu tirei fotografias q.b. e fomos todos à vida que, entretanto, fizera-se tarde.

Por esta altura já se tinham passado alguns meses sobre o golpe militar[5] e a tropa angolana continuava paulatinamente ao serviço, se bem que se registassem algumas deserções um pouco por todo o território. Em Luanda os poucos oficiais angolanos faziam lobby junto das estruturas do MFA, com destaque para o alferes Carvalho (que viria a morrer num desastre de mota pouco tempo depois), para que os angolanos saíssem imediatamente do exército português.

Contudo, não havia qualquer decisão sobre o assunto. A situação de Angola era, aliás, de total indecisão, com o Spinola a reunir em Cabo Verde com o Mobuto (dizia-se que para tratar do problema angolano) e a defender soluções federativas e devaneios quejandos. Em Angola proliferavam movimentos e partidos os mais díspares, desde federalistas a outros de cariz tribal ou religioso. E o Silvino Sivério Marques pairava acima de tudo isto como no tempo do Angola é nossa [6], como se nada se tivesse passado em Portugal…

Desta confusão toda, a UNITA emergia como o partido dos brancos, o MPLA como o partido dos mulatos e dos comunistas e a FNLA como o partido dos pretos do norte (o que nunca deixou de ser até perder quase toda a influência, nos anos 90).

Um belo dia, ao chegar de Luanda[7], e fui confrontado com um problema danado: um soldado branco tinha morto a tiro um soldado preto, os colegas deste último tinham pegado em armas e só a muito custo o Filipe, furriel do meu pelotão, albicastrense de quatro costados, tinha conseguido mantê-los com o dedo longe do gatilho. Contudo, queriam a pele do matador e... ir para casa.

A história conta-se em duas palavras: o Júnior (era um preto fulo[8] alto e forte) andava na passa[9] e terá respondido torto ao comandante. O outro, que era básico[10] e também bem abonado de corpo, não gostou que o Júnior falasse assim com o seu querido comandante, que o tratava paternalmente, e a quem correspondia com uma dedicação canina. Travaram-se de razões, o básico foi buscar a canhota e matou o outro.

O Júnior antes de cair ainda gritou qualquer coisa como “Irmãos, a eles!”. Os irmãos barricaram-se na caserna e ainda fizeram uns tiritos que não magoaram ninguém, até que o Filipe foi falar com eles (como diria o Alberto João, tinha-os no sítio!). Deixou-os falar, desabafar e depois deu-lhes a volta: fez-lhes ver que a coisa fora entre um semi atrasado mental e um semi drogado, e nada tivera que ver com a raça de cada um, que íamos tentar resolver o problema deles, etc, etc.

Diga-se que o Filipe era uma pessoa que lhes inspirava confiança, pois não só não era racista como seria dos poucos graduados com consciência cívica (para não dizer política). Tratava os soldados com respeito e estava sempre disponível para falar com eles e transmitir-nos as suas queixas sobre condições de vida (habitabilidade da caserna, qualidade da alimentação, etc) como se fossem suas.

Em resumo quando eu cheguei a Quibaxe já o trabalho principal estava feito e limitei-me a aconselhar o Comandante a passar os soldados angolanos à peluda, que era a sua verdadeira reivindicação. Pelo sim, pelo não, o básico já tinha sido posto em lugar seguro. Estava refugiado, às escondidas, na casa do sr Antunes, chefe local da PIDE[11], donde foi mais tarde transferido para Luanda.

Resolvido o problema, segui para N’Dalatando e daí para Luanda, acompanhado do meu colega Graça Martins (delegado do MFA no comando de Sector, uma espécie de meu superior nesta hierarquia paralela), para explicarmos os motivos que nos levaram a passar os nossos soldados angolanos à disponibilidade, antecipando a decisão que Luanda tardava a tomar.

Voltando à Excelência que habitava a Administração do Concelho, o tipo ficou um tanto passado com as novas funções que acumulava. Pretendeu mesmo fazer uma espécie de julgamento popular a um soldado nosso (como lhe cortámos cerce as vazas nunca percebi o que ele, ou quem eventualmente o “picava”, pretendia).

Tratava-se de um condutor que ao manobrar a Berliet para acostar aos armazéns do já referido PINT, foi rodeado pela população que tentava “desenrascar” umas latas, uma garrafas, umas caixas do que quer que fosse. Como os tempos eram de bandalheira, a operação decorreu no meio de gritos, correrias e buzinadelas. No meio da confusão, ficou um infeliz esmagado entre o camião e o cais.

O procedimento normal era um processo crime (auto de corpo delito, para ser mais preciso) que correria dentro dos tribunais militares. Só que o nosso amigo Administrador-comissário resolveu, como autoridade máxima em Quibaxe[12], que o assassino de um elemento do povo tinha que ser julgado em Quibaxe, para o que tinha até aberto o competente processo.

Não vou entrar em detalhes, mas uma conversinha na Administração, em português muito claro e vernáculo, foi suficiente para resolver o problema que não voltou sequer a ser aflorado.

O nosso tempo em Quibaxe estava a acabar, pois devíamos rodar para Catete, a dois passos de Luanda, sendo rendidos por um Batalhão de açoreanos. Estivemos quase um mês em sobreposição, mas não me lembro dos comandantes do Batalhão nem das companhias.

Só me lembro que era uma malta totalmente indisciplinada, que constituiu a primeira amostra do que viria encontar em Portugal, com unidades em autogestão, assembleias de unidade para decidir tudo e nada, assembleias para votar os célebres “documentos” dos 9, do Copcon etc, etc.

Do batalhão de açoreanos lembro-me de um alferes, Guimarães qualquer coisa, do MRPP (meu colega, portanto…) que acabou preso na casa de reclusão em Luanda. Não o consegui visitar, não obstante conhecer meio mundo em Luanda. Os PCs, que já então estavam em ascenção no seio do MFA, consideravam os MRs pessoas perigosíssimas, com as quais não se podia afrouxar a vigilância!

Resta acrescentar que saí de Quibaxe cavalgando uma mota, uma Jawa 175 que comprei a um colega de fados e guitarradas (sargento do PAD). A ideia era simples: como Catete fica a escassos 70 quilómetros de Luanda, a que me prendiam amizades e actividades várias, precisava de um meio de transporte que me levasse à capital ao fim da tarde (depois da guerra fechar) e de lá me trouxesse às tantas da matina.

A mota, que recebeu o nome foleiro de “Rainha da estrada”, cumpriu sempre bem a sua missão até falecer por falta de peças, já depois da independência, nas mãos de um afilhado da minha sogra a quem dei de presente quando regressei a Portugal.
. . . . .


NOTAS:

[1] Estou ainda na dúvida se não teria sido mais conveniente descair para a direita...


[2] o leitor não deverá imputar estas tiradas ideológicas às posições políticas de quem as escreve, mas apenas à necessidade de ilustrar melhor o que se ouvia aos revolucionários emergentes naqueles tempos

[3] o Bairro Alto, um cabo gingão e desenrascado, era um deles...

[4] faltou-me dizer que, durante uma das minhas estadas em Luanda, fora eleito à revelia representante da tropa, uma espécie de delegado do Batalhão junto das estruturas do MFA. Nessa condição tomava parte nas reuniões com os movimentos, ia a Carmona (sede da Zona Militar Norte) e a Luanda a algumas reuniões do MFA. Tive oportunidade de participar na reunião da CCPA (Comissão Coordenadora do Programa em Angola) em que foi decidida a atitude de “neutralidade activa” face aos movimentos (entenda-se apoio às forças progressistas, leia-se ao MPLA...)

[5] de 25 de Abril de 1974, qual havia de ser?

[6] Silvério Marques, então tenente Coronel, fora Governador Geral nos anos 60;

[7] a partir de certa altura eu estava sempre a chegar de ou a partir para Luanda (ou N’Dalatando, ou, menos vezes, Carmona), com as baldas do MFA a que se juntavam o “desvio para a esquerda” (que continuava a baralhar os neurologistas) e os estágios do serviço de Justiça (de que eu era, como já disse atrás, o guardião máximo no batalhão).

[8] claro, quase mulato. No início até pensava que ele era cabo verdiano.

[9] fumava liamba, puxava o boi, entendem?

[10] soldado com uma pequena deficiência de cabeça, que em tempos mais pacíficos ficaria livre da tropa mas que, em tempo de guerra, era incorporado para trabalhos auxiliares. Se os básicos fossem dispensados de ir à guerra, imaginem a quantidade de malucos em maior ou menor grau que surgiriam...
[11] as coisas pouco tinham mudado por estes lados, e essa instituição continuava a funcionar em Angola contra ventos e marés...

[12] na verdade, ele era apenas a autoridade máxima da administração civil, nada “riscando” no foro militar. Mas como comissário, voltou à carga até à conversinha referida no parágrafo seguinte…

3 comentários:

  1. Meu Caro
    Deixou um comentário no meu blog, no post o papel da fragata Gago Coutinho no 25 de Abril,
    Acontece que o que escrevo nesse post, é o que acredito ter acontecido, pois NÃO ME LIMITEI a contar a "história" que o Comandante Caldeira Santos relata, o meu marido fazia parte dessa guarnição, e além dele, ouvi a mesma versão de outros membros da guarnição, versão essa que considero a verdadeira e por isso a publiquei. O senhor estava lá? Se sim de que lado estava?

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  2. Marques Correia,
    imagino todo o frenezim desse tempo. Com os desenrascanços e improvisações necessários. Mas, foi o final possível como a guerra já tinha sido a possível.
    Como conheci em geral o tempo e os lugares, só não mencionou as datas, pelo menos por mês, para, quem viveu tambem aquele ambiente, era interessante para se localizar.
    Será que consegue acesso à literatura (pequena) de Norton de Matos? Por causa do Portugal e o Futuro?
    Cumprimentos

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  3. Sra D. Ana Marta,
    eu estava em Quibaxe no 25 de Abril, portanto não assisti aos factos.
    Mas. como sabe, nenhum historiador vivo viveu no tempo do Napoleão e, não obstante esse pormenor, muitos deles estudaram e documentaram-se sobre aquela época e escreveram a sua história (esta, sim com h) que está sempre a ser ajustada, à medida que vão surgindo novos dados, confirmando umas hipóteses, infirmando outras.
    A estória que conta no seu blog parece-se, de facto, muito, muito com a versão de Caldeira Santos que não teve o cuidado de apresentar ou ao menos, referir, depoimentos que corroborem o que conta.
    O mesmo não sucede com a versão do Cte Louçã.
    Veja ambos os depoimentos no Centro de Documentação 25 de Abril, na Universidade de Coimbra.
    Qual deles fala verdade?
    Um deles,seguramente, não o faz.

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