terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

ANGOLA Recordações da Tropa - Anexo 5, O Prof Herlander...

Ao COMBATENTE - Órgão da Liga dos Combatentes[1]

Sr Director:

O número de Janeiro do Combatente, inclui um artigo do Sr Herlânder Duarte intitulado “Post traumatic stress disorder”. Não sei se o articulista assenta as suas opiniões em conhecimentos científicos para pôr em causa uma doença de foro psiquiátrico, nem se se baseia em experiência própria para escrever de forma tão enfática sobre a política ultramarina e a guerra de África.

Penso, em todo o caso, que se impõe uma resposta, pelo modo impiedoso como se refere a camaradas nossos que estiveram na guerra, numa ou mais comissões por imposição, integrados nas Forças Armadas que deram corpo à política ultramarina definida pelo governo de então.

Não me deterei nas ideias do Sr Herlânder sobre a guerra do Ultramar, sobre a confiança que as populações depositavam em nós, nem sobre os inocentes que defendíamos, para além da Civilização e da Cristandade. Tampouco perderei o meu latim a discutir se a mocidade foi feita para o prazer, para o heroísmo, ou se a Providência lhe reservou outro destino.

O Sr Herlânder tem todo o direito a ter as suas opiniões e a exprimi-las, no seguimento das quais certamente terá lutado em África como voluntário e não terá deixado de resistir de arma na mão ao golpe do 25 de Abril. Com as posições intolerantes, firmes e hiper adjectivadas que manifesta, não seria de admitir menos que isso!

Assim, não vou perder tempo a desmontar a lógica duvidosa do articulista. Não resisto, contudo, a registar que ele acredita em traumas provocados pela exposição ao “rock” que “atordoa e martela, exaspera o sistema nervoso, desequilibra o cérebro, embrutece, provoca perturbações na consciência e na vontade”. Contudo, nega veementemente, que a exposição a um ambiente de perigo iminente como a guerra, com o seu cortejo de bombardeamentos, mortes (por vezes ao nosso lado), flagelações, sofrimento e privações de toda a ordem possa provocar traumas.

Voltando ao assunto que me interessa, penso que se deve deixar à ciência e aos médicos a definição e caracterização das doenças, sejam elas do foro físico ou psíquico, mas em particular estas últimas pois para o seu diagnóstico a evidência nem sempre é critério seguro.

Nas décadas de 60 e 70, as Forças Armadas assumiram sucessivamente a defesa de Angola, Moçambique e Guiné, em consequência da política ultramarina que o País prosseguia. Dos milhares de jovens que foram mobilizados ao longo dos anos, muitos foram feridos ou sofreram acidentes, de que resultaram mortes, mutilações, deficiências, cicatrizes.

Parece razoável que o Estado assuma por inteiro as consequências das suas políticas, e compense adequadamente os cidadãos que lhes deram corpo e, por causa delas, tiveram a sua vida prejudicada, ou terminada. Esta assunção de responsabilidades, nem sempre se fez de forma fácil e cordata. No início dos anos 70, antes e depois do 25 de Abril, os deficientes viram-se na contingência de desenvolver acções à margem das FA[2] e a criar uma associação, a ADFA, para conseguirem do Estado mais do que um abono miserável e aviltante. Infelizmente, o Estado nem sempre se comporta como uma pessoa de bem...

Quanto aos militares que, tendo a felicidade de voltar da guerra fisicamente indemnes, ficaram psiquicamente afectados, encontraram-se perante um Estado (e um Exército...) de mentalidade marcadamente arcaica, para quem as doenças psíquicas são infamantes e insidiosas, anuviam e falseiam a imagem dos combatentes. Há mesmo quem, como o Sr Herlânder Duarte, as relacione com irresponsabilidade, desonra e traição!

É preciso que a mentalidade das FA evolua e se actualize, sem receio de, com isso, alienar valores e princípios que as honram e distinguem. É necessário que os quadros aprendam que o ambiente em teatro de guerra pode afectar os combatentes de formas mais subtis e, por vezes, mais duradouras que os ferimentos e aleijões. Sem essa evolução, não podemos esperar que os mancebos[3] incorporados e mobilizados tenham um tratamento sério que lhes permita voltar da guerra sãos de corpo e espírito.

É inadmissível que o Estado tarde em assumir as suas responsabilidades para com os traumatizados de guerra.

É lamentável que as Forças Armadas não promovam o seu tratamento e neguem apoio à sua reinserção.

Acima de tudo, é desonroso que um Combatente olhe com desdém e desprezo para o seu camarada de armas, só porque não lhe descortina os aleijões.

Urge, pois, que a Liga dos Combatentes tome uma posição clara e informada sobre este assunto, e defina critérios que permitam enquadrar e apoiar estes camaradas. É imperdoável, para além de injusto, que se continue a meter no mesmo saco traumatizados, desertores, objectores de consciência e traidores.

. . . . . .

NOTAS:

No seguimento desta carta fui recebido pelo Presidente da Direcção Central da Liga dos Combatentes, general Altino Pinto de Magalhães, pessoa muito amável que me disse do interesse da Liga pelo tratamento dos ex-combatentes afectados pelo stress de guerra e que a Liga apoiaria os casos concretos que lhe fossem presentes. Na prática, só alguns anos depois, com a extinção de cromos como o Herlander, a Liga passou a assumir como seu o apoio àqueles ex-combatentes.

O processo contra o Herlander foi ganho pelo Dr Afonso Albuquerque que recebeu uma indemnização quase simbólica paga pela Liga (salvo erro). Comemorámos com uma almoçarada à conta do Herlander no Antigo Retiro do Quebra Bilhas, ali ao Campo Grande, entretanto encerrado por obra e graça da Opus Dei, dona do prédio.

[1] Esta carta não foi publicada pelo Combatente; foi-no pela revista da Apoiar, nª 2, de Julho/Setembro de 1996, juntamente com o artigo do Sr Herlander Duarte, e da resposta do Dr Afonso de Albuquerque. No seguimento desta troca de cartas, o Dr Afonso de Albuquerque processou o Sr Herlander Duarte. O processo estava em fase de instrução no início de 1997.

[2] chegaram, inclusive, a fazer manifestações de cadeiras de rodas.

[3] estou a falar dos nossos filhos, e não de seres abstractos e imateriais, putativos filhos da Pátria.

1 comentário:

  1. É imperdoável meter tudo no mesmo saco?
    Atenção que tem sido, subrepticiamente, embora com o rabo de fora, considerar que os "combatentes", que no 25 de Abril regressaram por Badajoz ou Vilar Formoso, esses sim, são dignos de ser lembrados, e não aqueles que regressaram pelo estuário do Tejo.
    E essa luta, embora bem disfarçada e embrulhada, é bem efectiva e usa os mais variados processos.

    Cumprimentos

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