quarta-feira, 8 de abril de 2009

OPINIÃO 95-96 - Stress de Guerra


Sr Director (COMBATENTE - Órgão da Liga dos Combatentes):

O número de Janeiro do Combatente, inclui um artigo do Sr Herlânder Duarte intitulado “Post traumatic stress disorder”. Não sei se o articulista assenta as suas opiniões em conhecimentos científicos para pôr em causa uma doença de foro psiquiátrico, nem se se baseia em experiência própria para escrever de forma tão enfática sobre a política ultramarina e a guerra de África.

Penso, em todo o caso, que se impõe uma resposta, pelo modo impiedoso como se refere a camaradas nossos que estiveram na guerra, numa ou mais comissões por imposição, integrados nas Forças Armadas que deram corpo à política ultramarina definida pelo governo de então.

Não me deterei nas ideias do Sr Herlânder sobre a guerra do Ultramar, sobre a confiança que as populações depositavam em nós, nem sobre os inocentes que defendíamos, para além da Civilização e da Cristandade. Tampouco perderei o meu latim a discutir se a mocidade foi feita para o prazer, para o heroísmo, ou se a Providência lhe reservou outro destino.

O Sr Herlânder tem todo o direito a ter as suas opiniões e a exprimi-las, no seguimento das quais certamente terá lutado em África como voluntário e não terá deixado de resistir de arma na mão ao golpe do 25 de Abril. Com as posições intolerantes, firmes e hiper adjectivadas que manifesta, não seria de admitir menos que isso!

Assim, não vou perder tempo a desmontar a lógica duvidosa do articulista. Não resisto, contudo, a registar que ele acredita em traumas provocados pela exposição ao “rock” que “atordoa e martela, exaspera o sistema nervoso, desequilibra o cérebro, embrutece, provoca perturbações na consciência e na vontade”. Contudo, nega veementemente, que a exposição a um ambiente de perigo iminente como a guerra, com o seu cortejo de bombardeamentos, mortes (por vezes ao nosso lado), flagelações, sofrimento e privações de toda a ordem possa provocar traumas.

Voltando ao assunto que me interessa, penso que se deve deixar à ciência e aos médicos a definição e caracterização das doenças, sejam elas do foro físico ou psíquico, mas em particular estas últimas pois para o seu diagnóstico a evidência nem sempre é critério seguro.

Nas décadas de 60 e 70, as Forças Armadas assumiram sucessivamente a defesa de Angola, Moçambique e Guiné, em consequência da política ultramarina que o País prosseguia. Dos milhares de jovens que foram mobilizados ao longo dos anos, muitos foram feridos ou sofreram acidentes, de que resultaram mortes, mutilações, deficiências, cicatrizes.

Parece razoável que o Estado assuma por inteiro as consequências das suas políticas, e compense adequadamente os cidadãos que lhes deram corpo e, por causa delas, tiveram a sua vida prejudicada, ou terminada. Esta assunção de responsabilidades, nem sempre se fez de forma fácil e cordata. No início dos anos 70, antes e depois do 25 de Abril, os deficientes viram-se na contingência de desenvolver acções à margem das FA
[1] e a criar uma associação, a ADFA, para conseguirem do Estado mais do que um abono miserável e aviltante. Infelizmente, o Estado nem sempre se comporta como uma pessoa de bem...

Quanto aos militares que, tendo a felicidade de voltar da guerra fìsicamente indemnes, ficaram psìquicamente afectados, encontraram-se perante um Estado (e um Exército...) de mentalidade marcadamente arcaica, para quem as doenças psíquicas são infamantes e insidiosas, anuviam e falseiam a imagem dos combatentes. Há mesmo quem, como o Sr Herlânder Duarte, as relacione com irresponsabilidade, desonra e traição!

É preciso que a mentalidade das FA evolua e se actualize, sem receio de, com isso, alienar valores e princípios que as honram e distinguem. É necessário que os quadros aprendam que o ambiente em teatro de guerra pode afectar os combatentes de formas mais subtis que os ferimentos e aleijões e, por vezes, mais duradouras. Sem essa evolução, não podemos esperar que os mancebos
[2] incorporados e mobilizados tenham um tratamento sério que lhes permita voltar da guerra sãos de corpo e espírito.

É inadmissível que o Estado tarde em assumir as suas responsabilidades para com os traumatizados de guerra.

É lamentável que as Forças Armadas não promovam o seu tratamento e neguem apoio à sua reinserção.

Acima de tudo, é desonroso que um Combatente olhe com desdém e desprezo para o seu camarada de armas, só porque não lhe descortina os aleijões.
Urge, pois, que a Liga dos Combatentes tome uma posição clara e informada sobre este assunto, e defina critérios que permitam enquadrar e apoiar estes doentes. É imperdoável, para além de injusto, que se continue a meter no mesmo saco traumatizados, desertores, objectores de consciência e traidores.

. . . . .

NOTAS:

[1] chegaram, inclusive, a fazer manifestações de cadeiras de rodas.

[2] estou a falar dos nossos filhos, e não de seres abstractos e imateriais, putativos filhos da Pátria.

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