sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

ANGOLA Recordações da Tropa - Cap 5 O Bairro Militar



(O autor e a mana Fátima no bairro militar com a ponta do Lubango ao fundo, a noxeira à esquerda e a casa das comandâncias à direita)



A meio da quarta classe, estava a minha irmã já no Liceu, mudámos de casa. O bairro militar ficou pronto, de modo que fomos com armas e bagagens para o Alto da Conceição, a dois passos do quartel, com uma bela vista sobre a cidade e de frente para a ponta do Lubango, já então com o Cristo Rei no topo.

O bairro era uma clareira no meio do mato (não havia casas por perto, e as mais próximas eram os edifícios do quartel), aberta numa encosta suave, de modo que quase todas as famílias tinham chitacas onde criavam galinhas, coelhos, etc, e ocupavam as horas vagas a cavar.


(A imagem a seguir, do Google Earth, mostra o pequeno bairro militar na actualidade, cercado de musseque; do parque infantil, nem sombra, mas em lugar de uma noxeira vemos uma mancha de muitas árvores)



Para a miudagem havia um parque infantil, com uma noxeira[1] enorme no meio, mas do que o pessoal gostava mesmo era de caçar sardões e lagartos (havia-os de tamanhos vários e coloridos para todos os gostos) e atirar aos passarinhos com pressão de ar (o Teodorico filho único, e ligeiramente mais velho que eu, era o feliz proprietário de uma). Para além disso, brincava-se com carrinhos (feitos por nós, com suspensão, luzes, caixa basculante e as últimas novidades da técnica japonesa, e conduzidos com um fio duplo, para dar direcção), faziam-se grandes futeboladas e andava-se de bicicleta para todo o lado.

A foto ao lado, tirada numa das chitacas junto ao bairro militar, enviada hoje (12 ABR 2009) pelo Teodorico em que estão Fernandinho Branco, o Teodorico, de óculos, euzinho, a Antoninha, irmã do Fernandinho; à frente está a Milu, irmã mais nova do Fernando e da Antoninha, que viria a morrer pouco depois da foto, num acidente que enlutou o bairro.


Escuso de lembrar que naqueles tempos arcaicos o computador pessoal e os jogos electrónicos estavam longe de ter sido inventados, a televisão dava os primeiros passos no Puto e ainda não chegara a Angola, de modo que aplicação dos tempos livres (que ainda por cima eram muitos) tinha muito que se lhe diga.

Podia-se passear pelos arredores sem problemas de maior, pois as feras não abundavam (reduziam-se a umas cobras e pouco mais) e os pretos eram pacíficos. Havia, contudo, o problema da língua. Contrariamente ao que se passava no norte e centro, a população do sul estava pouco influenciada pelo branco, que tinha que aprender os dialectos locais para se fazer entender. As mucaias[2] continuavam a andar de mamas à vela, dialogando com grande profusão de uelelepós e cás[3], com imensas voltas de missangas ao pescoço, e os cabelos empapados com bosta de vaca amassada com erva. (A foto ao lado foi tirada do site jomagudu, que vos convido a visitar)

Na encosta da ponta do Lubango havia onças, e as chitacas, junto ao bairro militar, eram visitadas por animais de pata grande, que nós gostávamos de pensar serem leões. As pegadas eram maiores que as dos maiores cães que havia no bairro, mas os entendidos não se entendiam sobre o bicho que as deixava. As esperas que os nossos caçadores lhes fizeram foram goradas, de modo que a malta miúda continuava a imaginar um leão a rondar os galinheiros (?!) pela calada da noite, evitando rugir para não nos acordar.

Os caçadores do bairro eram o Sr. Branco (transmontano de Brunhoso, nos arredores de Mogadouro), o Sr. Oliveira (pai do já citado Teodorico) e o Alferes Laborinho (não sei se era miliciano, se do quadro, mas a sua qualidade de oficial obriga a que revele a patente). As caçadas eram, normalmente, bem sucedidas (bons tempos!) e, para além das habituais cabras do mato[4], traziam, de vez em quando, uma pacaça ou uma gunga[5]. (A foto da pacaça foi tirada deste site)

Pelo que já referi sobre a localização do bairro, depreende-se que as idas para escola a pé não eram viáveis. Assim, nos primeiros tempos, a rapaziada tinha à disposição um camião Mercedes, com a caixa de carga provida de bancos corridos, e devidamente protegida por uma capota de lona.

Os bancos eram orientados longitudinalmente, dois laterais e dois centrais, disposição que permitia que a carga humana se deslocasse para a frente quando ocorria uma travagem mais brusca. Nesses casos, formava-se um monte de corpos, pernas, braços, cabeças e pastas do qual saíam gritos selvagens de “inércia!”, à mistura com abafados ais e uis.

Destas travagens resultavam, por vezes, sonoras chapadas, quando uma mão mais ousada aproveitava a confusão para apalpar o que não devia. Por este pormenor, fica revelado que no bairro militar havia rapazes e raparigas, muitos dos quais eram teenagers (nessa altura não sabiam, pois a designação só anos mais tarde entraria no léxico português).

Como o camião era o único meio de transporte existente (transportes públicos não havia, para esta parte da cidade, e carros particulares contavam-se pelos dedos de uma mão), os adultos utilizavam-no nas idas à cidade. Ao fim de pouco tempo, as molhadas provocadas pela inércia dos corpos em movimento, quando o camião travava, começaram a preocupar as mamãs, que se interrogavam como seria a coisa na ausência de adultos, se na presença delas a chungaria era o que era.

Como resultado desta justa apreensão, o camião, e mais tarde o autocarro Volvo que lhe sucedeu, passou a ter um vigilante (um cabo branco), para além do condutor (o Ventura e o Miguel, soldados pretos, milagrosamente livres dos habituais nomes Sabonete e Canivete).

Uma das passeatas que fazíamos, a partir do bairro militar, era a visita aos barracões. Como o nome indica, era um conjunto de vários barracos de pau a pique cobertos por capim seco, que constituíram o primeiro aldeamento dos pioneiros que subiram a serra da Chela, para se instalar no planalto. À semelhança do monumento aos boers, na África do Sul, respirava-se neste local um ambiente de reverência pela memória daqueles que afrontaram distâncias, febres, feras e a hostilidade da população para trazerem a civilização (e fazerem pela vida, claro) ao planalto onde, por via de regra, o governo (distrital, provincial e central) os votava ao mais rigoroso abandono. (veja mais sobre esta história )

Depois da independência estive várias vezes em Sá da Bandeira (que recuperou o nome original de Lubango), mas não me ocorreu informar-me se este vestígio dos primeiros colonos ainda existe, ou se foi arrasado, à semelhança das estátuas dos heróis da colonização (militares na sua grande maioria).

À falta de consenso sobre os “heróis do povo”, o governo da Angola independente arranjou monumentos bizarros, alguns dos quais ainda hoje permanecem em posição. No largo do mercado do Kinaxixi, em Luanda, depois de apeada uma estátua horrorosa alusiva à 1ª grande guerra, colocaram no pedestal uma autometralhadora. No largo 1º de Maio arranjaram um monumento que consistia numa autometralhadora russa a abalroar uma congénere sul africana: o conjunto simbolizava a vitória do povo sobre os carcamanos no Keve, mas foi rapidamente crismada de cópula mecânica (e era o que parecia).

Sobre os heróis não consensuais, lembro o caso da cidade de Novo Redondo que, após a independência, recebeu o nome de N’gunza Kabolo. Mais tarde, “descobriu-se” que o Kabolo, destacado combatente local, não era digno da distinção (traíra a revolução de forma subtil, ou estaria feito com os fraccionistas do Nito Alves). A cidade passou a ser referida apenas como N’gunza até mudar para o nome actual, Sumbe, que não é nome de pessoa, logo, não está sujeito a chatices..

. . . . . .

NOTAS:


[1] que é a árvore que dá noxas (esperavam o quê?).

[2] mulheres.

[3] ao cruzarem-se no caminho, perguntavam pela família, por cada um dos membros da família, juntando a cada nome o respectivo uelelepó (como está?) a que a interpelada respondia um prolongado cáááá (qualquer coisa como está bem, obrigado); muitas vezes já iam de costas, a distâncias consideráveis, e o diálogo continuava, sem se voltarem.

[4] designação que cobria diversos tipos de veados, nunces, antílopes e quejandos.

[5] cornúpeto de índole vacum, de grande corpulência e bifes muito saborosos. Aproveito para pedir desculpa pelos meus baixos conhecimentos de pecuária e ciências afins.

2 comentários:

  1. o local dos Barracões o só existe como está muito bem conservado como -monumento

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  2. Embora tardiamente venho dizer-lhe que fiquei satisfeitissimo com a descoberta deste blog por mero acaso. Embora não o esteja a localizar na minha memória, mas uma coisa é certa, fomos contemporâneos em Sá da Bandeira. Todos os nomes que cita me são familiares, desde a Antoninha e o irmão Fernandinho até ao Alf Laborinho que na altura era milº e hoje penso ser TCor reformado. Andei no liceu com o Rui filho do Comandante Tcor F. Duarte.O "caneco" também também foi meu prof Quando cheguei a Sá da Bandeira já o Bairro militar estava concluído e habitado. Meu pai era Ten no RISB e morei em várias casas desde uma em frente ao qurtel velho até ao BºMil da Art.ª.Além do Teodorico havia Madalena filha do 1ºSar Oliveira se não estou em erro, a Juju e as manas de que agora não me recordo o nome.

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