O texto chegou sem duas fotos que nele eram referidas.
Se, entretanto, as fotos chegarem, insiro-as nessa altura. As imagens que acompanham o texto são minhas e destinam-se apenas a aligeirar o post, equilibrando as manchas de texto com alguma imagem. As referências às fotos são minhas e vão entre parênteses, em letra menor.
O Falso Guia, por Manuel Lopes
"A minha comissão militar na guerra colonial em Angola, foi cumprido um ano em Quibaxe Dembos, o resto da comissão foi cumprida em Catete, no meu quartel em Quibaxe havia um senhor negro com o nome Domingo, tinha pertencido aos quadros do M.P.L.A.
Num combate, este senhor foi capturado e feito prisioneiro de guerra, com esperteza e sabedoria convenceu os nossos oficiais a libertarem-no, passou a ser o senhor Domingo e a ter mais liberdade no nosso quartel coisa que nós tropa portugueses não tínhamos, sempre se mostrou muito interessado em colaborar com a tropa portuguesa contra os guerrilheiros dos partidos de libertação de Angola, com informações de tudo o que sabia, ofereceu-se ao nosso comandante para ser guia das nossas tropas em todas as saídas que faziam à mata.
Nas operações que fazíamos às matas, o guia arranjava sempre desculpas, pedia ao alferes para ir fazer reconhecimento dos trilhos, aconteceu muitas vezes sairmos dos trilhos certos seguirmos por trilhos errados e entramos nos territórios do inimigo, ou andarmos horas e horas perdidos sem saber o que fazer.
Numa operação quando o guia pediu para avançar para fazer reconhecimento dos trilhos, eu pedi ao alferes Sousa (na foto ao lado; o mais alto é o alferes Glória, já falecido) para me deixar ir com o guia, expliquei-lhe a minha intenção, o alferes chamou o guia e deu-lhe a notícia, ele não acatou as ordens, meteu-se a correr pelo capim fora, deixou-nos desamparados e perdidos, subimos e descemos serras, andamos por rios com água pelo pescoço, apanhamos chuvadas sem conta, andamos debaixo de calor abrasador, por capim alto que nos obrigou a separar-nos e a perdermo-nos uns dos outros, o nosso sofrimento era tanto que chegamos a desejar que os turras nos atacassem e nos matassem a todos, a certa altura ouvimos um tiro e a chamarem o guia era o alferes, foi assim que se juntamos todos e o guia também, assim que eu o vi chamei o alferes e pedi-lhe para quando chegasse ao quartel fizesse queixa dele ao comandante que ele era traidor, o guia começou com desculpas e a chamar-me de racista, eu só respondi que no local e na hora certa ia-mos ver quem era racista.
A nossa chegada ao local da partida estava marcada para o por do sol, quando chegamos já eram altas horas da noite, cheios de fome e sede e com os pés a sangrar, a sede era tanta, que ao passar por um charco feito pelos animais, todos nós com tal sofreguidão deitamo-nos a beber a água, a molhar a roupa e o corpo sem repararmos que era mais urina do que água e toda a espécie de bicharada.
Ao começarmos a caminhada, apareceu um velho negro aos gritos a pedir ajuda, que os turras tinham-lhe destruído a tonga de milho para roubarem as espigas, nós não ligamos, era uma jogada do nosso guia com os turras para acabarem com o nosso grupo todo, porque naquele momento estávamos de rastos não tinhamos nenhumas condições para responder ao inimigo, era um doce para os turras, o guia ainda começou aos saltos a querer obrigar o alferes a fazer a perseguição, eu estava revoltado com tudo a que já tinha assistido e pedi ao alferes que mandasse o guia sozinho, que todos nós iríamos ver o resultado final porque nós não tinha-mos nada a ver com aquela jogada suja, mais uma vez, o senhor Domingo chamo-me turra e racista eu não respondi à provocação porque vi que este senhor já estava a entrar em desespero, só perguntei ao alferes se já tinha compreendido alguma coisa do que eu tinha dito a respeito aquele senhor, respondeu-me que nem queria acreditar mas que era tudo verdade quando chegasse ao quartel que contava tudo ao comandante, tudo isto fez, mas não valeu de nada, continuou a ser um senhor para o comandante.
Regressámos ao local de partida à Sanzala do Quipaulo, encontramos as viaturas para nos transportarem para o quartel, os nossos colegas das viaturas e da escolta já pensavam no pior que nos tinha acontecido, partimos de regresso ao quartel, gastamos algumas três horas para chegarmos todos em farrapos mas com o dever cumprido.
Eu andava sempre com tudo aquilo a mexer na minha cabeça, não sou e nunca fui racista, não gosto de ouvir falar em tal palavra, a falsidade não ligava com a minha maneira de ser, sério, honesto, educado, amigo do meu amigo, sacrificava-me para dar o meu melhor na minha especialidade de enfermeiro para bem de todos, sem olhar a cores defeitos feitios especialidades e graduações, por tudo isto sentia-me ofendido e revoltado quando via traições, mas sempre com a ideia que tinha que ser eu a fazer algo para descobrir e colocar as verdades à frente de quem mandava em nós e consegui, eu ao ver aquela figura no meu quartel, com o à vontade e mais liberdade do que toda a nossa malta, o que mais me deitava a baixo era vê-lo a rir ao passar por mim a provocar com a intenção de eu o agredir para fazer queixa para eu ser castigado e vingar-se de mim por eu o descobrir, mas nunca lhe fiz a vontade consegui saber esperar pela hora certa.
Falei e lidei sempre educadamente com o senhor Domingo como o fazia com todas as outras pessoas, a seguir a todos estes acontecimentos, a primeira vez que ele se dirigiu à enfermaria e eu a trabalhar como enfermeiro de dia a pedir-me que eu o atendesse, eu como o fazia com todos, prontifiquei-me, perguntei-lhe o que tinha e o que precisava, respondeu-me em provocação que não precisava dos brancos para nada e que era racista, só queria que eu lhe desse uma sacada de medicamentos para ir entregar ao grupo do M.P.L.A à mata e, que ia dar ordens para me matarem, eu não mostrei medo e mandei-o repetir o que ele acabara de dizer, ele repetiu e disse, que só queria ter tantas moedas de cinco tostões como cabeças de brancos já tinha cortado, eu não esperei que ele abrisse a boca para dizer outra palavra, a primeira coisa que encontrei foi uma garrafa de champanhe cheia de álcool dei-lhe com ela na cabeça que caiu logo no chão, ficou com o couro cabeludo separado ao meio pendurado metade para cada lado parecia as orelhas dum elefante, perguntei-lhe se sabia com quem estava a lidar e quem era racista se era eu ou ele, que saía dali com vida e com a cabeça cosida se fizesse a jura sagrada de joelhos e, se fosse embora e nos deixasse em paz sem sermos atacados pelos turras colegas dele, ele fez a jura sagrada de joelhos, (sangue de Cristo eu vai embora não volta mais e não chateia branco), eu rapei-lhe o cabelo e com a sebéla do calçado, com o cordel e o alicate cosi-lhe a couro cabeludo todo, desinfectei tudo com álcool e enrolei-lhe vários rolos de gaze na cabeça parecia um árabe, no fim pedi-lhe para se mirar ao espelho que estava muito lindo.
Quando se viu ao espelho até saltou de contente por ficar tão lindo com um gorro branco e vermelho, (manchado com tintura) mas disse-me logo que os amigos quando vissem também queriam, eu respondi se quisessem havia para todos, o senhor Domingo saiu da enfermaria com a promessa de não voltar, eu satisfeito por conseguir o que queria e ter o meu dever cumprido, mas passado uns cinco minutos ouvi gritos e ralhos fui ver, era o senhor Domingo tão vaidoso que ficou com o seu gorro, foi ter com o Viana cozinheiro mostrar-lhe o gorro e exigir-lhe comida da boa, porque ia de viajem para Luanda e quem mandava ali era ele, o cozinheiro já sabia tudo, eu já lhe tinha contado, andava-mos todos ao desafio para ver quem era o primeiro a tratar-lhe da saúde, deu-lhe comida da boa com a pá de madeira do caldeirão da sopa pela cabeça a baixo, lá se foi o gorro, braços, costas, foi por onde o apanhou, só sei dizer que vi o senhor Domingo a saltar o arame farpado a toque de comida de pá do caldeirão, até hoje não sei a onde para o senhor Domingo.
Só eu e o Viana é que sabiamos o final da história do senhor Domingo, todos perguntavam por ele, mas ninguém sabia responder e quem sabia andava calado."
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